O testemunho de Francisco
Graças à televisão, mas sobretudo a ele próprio, o Papa Francisco volta a ser o tema destas colunas, o que até pode parecer exagero. Contudo, o exagero será antes do próprio Francisco que tem dado claros e reiterados sinais de, contrariando uma antiga tradição vaticana, levar a sério princípios há muito votados ao esquecimento ou, quando muito, limitados a servirem de ornamentação verbal dentro de limites estrictos, não se vá provocar impactos desagradáveis em consciências comodamente adormecidas. Desta vez, o motivo próximo da tomada de Francisco como assunto central deste comentário é a sua viagem a Cuba (e também aos Estados Unidos, é certo, mas essa parte do itinerário é menos propiciadora de comentários, salvo eventual e surpreendente prova em contrário). Poderá dizer-se que antes do actual Papa outros antecessores seus visitaram Cuba, o que é verdade, mas acontece que Francisco parece ser de outra massa: leva muito a sério princípios fundamentais mas geralmente esquecidos da sua religião; suscita incómodos em quem estava habituado a não ser incomodado pela Santa Sé; ainda que com palavras relativamente moderadas, mas não tanto quanto alguns lhe aconselhariam, aplica-se a denunciar o sistema socioeconómico dominante e atreve-se a qualificá-lo de criminoso. Paralelamente, terá desencadeado acções de limpeza interna no Vaticano das quais, aliás, não nos chegam muitas notícias, sendo contudo legítimo admitir que por muito menos que isso, talvez apenas por suspeita de intenções, faleceu rapidamente João Paulo I não há muitos anos. O que pode fazer lembrar palavras do nosso Mestre Gil: «a História de Deus tem tais profundezas…»
Argentino como um outro
Nos diversos canais portugueses de televisão, a viagem do Papa Francisco a Cuba teve a cobertura mínima que o acontecimento impunha. Foi diferente, naturalmente, o que aconteceu na televisão cubana, e quem pôde sintonizar o Cubavision teve oportunidade de olhar a multidão de decerto muitos milhares de cubanos que assistiam à missa celebrada pelo Papa, desse modo dando testemunho tácito de que as décadas de governo castrista não prejudicaram a liberdade de culto nem impuseram aos católicos cubanos a retirada para qualquer espécie de catacumbas clandestinas. Um outro interessante e proveitoso momento de reportagem foi o da prédica de Francisco a uma audiência de sacerdotes e religiosas: nela, o Papa utilizou largo tempo a recordar princípios básicos do cristianismo em matéria de prática perante as desigualdades sociais e, se o fez, foi decerto por considerar que lembrar essas regras àqueles ouvintes seria importante, que talvez alguns deles carecessem disso ou porventura que nunca é demais recordar o fundamental. Porém, de tudo quanto relativamente a esta viagem papal se viu na televisão, será talvez compreensível destacar o momento da chegada e a primeira troca de cumprimentos entre Francisco e Raul Castro. É que o Papa não se limitou a cumprimentar o anfitrião que o recebia: fez questão de naquele mesmo instante confiar ao presidente cubano um recado para Fidel: de cumprimentos «com consideração e respeito». O telespectador português que tenha tido a sorte (e a sabedoria) de visionar aquele momento bem poderá ter ficado a perguntar-se quantos homens públicos ou semipúblicos portugueses, quantos comentadores ou politólogos lusos, terá alguma vez ouvido referirem-se a Fidel Castro «com consideração e respeito», parecendo antes evidente que o contrário é que tem vindo a ser a regra geral com poucas excepções. É certo que são portugueses, condicionados, talvez amestrados, por décadas de doutrinação anticastrista. E que Francisco Bergoglio, Papa, nasceu na Argentina. Por coincidência, a pátria de Che Guevara.