Fiscalizar é crucial para a verdade do voto
É bem conhecida a farsa que era no nosso País o processo eleitoral no fascismo. «Eleições» em que era comum a chapelada, em que até os mortos e ausentes votavam pela mão de legionários, em que os opositores eram banidos dos cadernos, as mesas de voto selectivamente escolhidas, as contagens viciadas.
Alterada que foi radicalmente esta realidade com a Revolução do 25 de Abril, nem por isso foi erradicado por completo o quadro de graves limitações ao exercício das liberdades democráticas por parte das forças reaccionárias e conservadoras. Boicotes a sessões de esclarecimento, acções de intimidação e coação, ilegalidades de variada ordem, discriminação e silenciamento pela comunicação social, abuso de poder, pressões religiosas contam-se entre as práticas atentatórias ao sentido genuíno do voto dos portugueses que estiveram presentes em muitos actos eleitorais já em democracia.
Mas será que faz sentido, hoje, 41 anos depois da Revolução do 25 de Abril, abordar este tema? Será que o risco de práticas fraudulentas é assim tão grande que justifique uma atenção renovada na fiscalização do processo eleitoral por forma a garantir o mais possível a verdade do escrutínio, no respeito pela vontade dos portugueses?
A resposta a estas questões é clara: faz todo o sentido e há todas as razões para trazer o tema para primeiro plano. Mais ainda, agora, que estamos a pouco mais de um mês dessa batalha importantíssima que são as legislativas do próximo dia 4 de Outubro. Sobre isso não têm qualquer dúvida os nossos interlocutores, Eugénio Pisco, membro do CC e da Comissão Eleitoral do PCP, e João Almeida, membro da Comissão Nacional de Eleições, indicado pelo PCP.
E foi exactamente por aí que começou a entrevista dada por ambos ao Avante!.
Por que razão continua a ser tão importante falar de fiscalização nas eleições?
Eugénio Pisco – Em muita gente criou-se a ideia de que, hoje, esta questão não tem as mesmas exigências do passado. E também essa outra ideia de que a mesa eleitoral se transformou em espaço de convívio, quase (ou mesmo) de petisqueira, onde todos os membros das mesas estão irmanados dos mesmos objectivos, todos são bons rapazes.
Quando há problemas, é que são elas...
Ora a compreensão da importância da fiscalização eleitoral é uma questão central.
João Almeida – Na Madeira o que houve foi um problema informático que foi empolado, empolamento esse utilizado para abafar os problemas reais que ocorreram nesse processo eleitoral.
A verdade é que não foi possível à CDU garantir a fiscalização em muitas mesas. A comprovar essa deficiente fiscalização está a discrepância entre actas e editais, a ausência de protestos e reclamações. Houve resultados absurdos que tiveram de ser corrigidos na assembleia de apuramento. Assistiu-se a um défice de fiscalização e a uma pressão forte para que esta não se fizesse. O que determinou que, por uma diferença de cinco votos, a CDU tivesse menos um deputado, deputado esse que tiraria a maioria absoluta ao PSD.
É assim da maior importância a formalização das reclamações, dos protestos e seus fundamentos, no decurso da votação, bem como do apuramento de resultados quer na assembleia local quer depois na assembleia de apuramento geral.
É aí que entra o papel dos membros das mesas e dos delegados.
EP – Quem pode protestar são os delegados e não os membros das mesas. E é com base nesses protestos que se pronuncia a assembleia de apuramento geral. As ocorrências que não tenham sido objecto de reclamação no momento próprio, depois, já nada há que as possa alterar.
Daí a importância e o papel assumido pelos delegados.
Outra ideia que perpassa em muitas organizações do Partido é a de que se já temos elementos nas mesas, então, está a coisa feita, não é preciso mais nada. E só se houver gente disponível, é que se preenche o lugar de delegado. Ora isto é errado.
Vamos a exemplos concretos de situações mais comuns e que levantam problemas.
EP – O problema do voto acompanhado. Esta é uma das questões mais delicadas e que está perfeitamente tipificada. Pode servir para tudo, para acompanhar uma pessoa que tem de facto dificuldades, ou pode servir para levar os idosos todos de um qualquer lar a votar numa determinada força política a mando do cacique local.
E quando isto acontece e a questão é levantada, nalguns casos, os seus protagonistas dizem: «isto sempre foi assim». E o sempre foi assim faz com que nalgumas zonas isso se institua como prática.
JA – Outra questão que se coloca e é motivo de alguma confusão é a intervenção directa dos presidentes de Junta de Freguesia para substituir membros de mesa que não estejam logo às sete da manhã, para interferir nos trabalhos e dar ordens às mesas ou para pressionar os eleitores.
EP –Em muitos sítios sucede também que já ninguém exibe a urna, porque toda a gente confia em toda a gente. Isto revela uma tendência natural para simplificar os procedimentos, sobretudo as formalidades que parecem não ser necessárias. E isso é grave. Porque se em 80 por cento dos casos é mesmo assim, porque toda a gente confia em toda a gente, haverá sempre casos em que assim não é e, portanto, o melhor é fazer como está na lei.
Outro problema que não é assim tão incomum, ao que sabemos, prende–se com a colocação da cabine de voto.
JA – Há de facto muitos pequenos problemas como esse. A câmara de voto não existe para garantir a vigilância dos eleitores. Se for possível garantir que não acontecem pressões quando votam duas pessoas ao mesmo tempo, muito bem, mas a câmara de voto deve estar colocada de tal forma que qualquer cidadão que vai votar sinta que ninguém pode ver o que está a fazer. Esse é o primeiro e principal objectivo.
Às vezes, num sítio ou noutro, aparece outro problema que é o de a mesa admitir a votar quem não está inscrito ou recenseado. Ora isso é absolutamente proibido. Há uma deliberação da CNE que admite que se faça correcções, mas apenas em casos de erros materiais.
Outra questão que por vezes ocorre é a mesa deixar votar cidadãos sem que se identifiquem. É evidente que a lei permite que um cidadão que não leve identificação nenhuma possa votar. Pode fazê-lo de duas maneiras: todos os membros da mesa conhecem aquela pessoa; ou quando dois cidadãos digam que ele é de facto aquela pessoa. Isso deve ficar tudo lavrado em acta. Mas isto são excepções.
E o que fazer quando há um engano das pessoas no preenchimento do boletim de voto?
JA – Isso não tem a ver com fraude, mas afecta as pessoas. Muitas anulam o voto quando isso acontece, havendo outras que o tentam levar ou levam mesmo para casa, escondido, e não votam. Ora isso deve ser esclarecido: as pessoas quando se enganam têm direito a corrigir, trocar o boletim onde se enganou por outro.
Transportar a urna para a rua parece não ser também uma situação inédita…
EP – Este é um problema que está a montante, ou seja na escolha do espaço onde vai funcionar a secção de voto. Se numa determinada localidade é montada a secção de voto num primeiro andar, sem elevador, já se sabe que não estão preenchidas as condições funcionais para que pessoas com mobilidade reduzida possam exercer o seu direito de voto. Nestas circunstâncias em que isto não foi tido em conta – se calhar em alguns casos intencionalmente –, há situações em que vem a urna acompanhada dos membros da mesa e delegados à porta do edifício para votar. Ora isto não é permitido.
Voltando ao voto acompanhado, este parece ser dos problemas que ocorre mais frequentemente e que provoca maiores danos à integridade do acto eleitoral.
JA – Particularmente em zonas onde a CDU não tem grande influência. A Constituição diz que o voto é pessoal, não permite o voto por procuração. Em casos absolutamente extremos, em que a pessoa não consegue fazer as operações materiais para concretizar a sua vontade, poderá ser outro a fazer essas operações por ele.
É frequente as mesas deixarem votar desta forma idosos, analfabetos, reformados, que vêem e podem fazer a cruz no boletim sozinhos. E quem vota por todas estas pessoas costumam ser outras que têm uma preponderância qualquer sobre elas e que votam à sua maneira.
Ora não é de todo em todo admissível que as mesas permitam que alguém vá votar por 30 pessoas. Que todas as pessoas só tenham aquela como a única pessoa da sua confiança. Isto só acontece porque as mesas são coniventes e ninguém protesta.
Estão identificados outros problemas ou incidentes na votação?
JA – A presença dos candidatos também pode ser um problema. Têm direito a fiscalizar tudo e até a recorrer e reclamar. O entendimento da CNE é esse, que os candidatos têm todo o direito de verificar as operações, mas que permaneçam o menos tempo possível e que enquanto estão se comportem de forma a não pressionarem, mesmo indirectamente, os eleitores.
E a questão do voto antecipado?
EP – Há necessidade de não perder de vista a importância da fiscalização do voto antecipado, embora isto coloque problemas como é o de obrigar à presença de um delegado na Câmara Municipal durante cinco dias.
O decisivo papel dos delegados
Como é em geral a actuação dos membros das mesas e delegados face aos incidentes que ocorrem?
EP – A grande questão está em saber como é que os nossos delegados e membros das mesas estão conscientes do seu papel, se dominam aquelas que são as exigências legais acerca do funcionamento da votação, e se estão à-vontade para saber quando é preciso agir. Não estando, muitas vezes, encolhem-se e permitem que aconteçam situações irregulares durante a votação, sem qualquer protesto ou reclamação.
Ora acontece que a apreciação de irregularidades ocorridas durante o acto eleitoral só se efectua na assembleia de apuramento se tiver havido as correspondentes reclamações por parte dos delegados.
A preparação dos nossos membros das mesas e delegados é assim da maior importância. Conhecerem o que a lei determina é fundamental para o seu bom desempenho.
Neste contexto, a acção dos delegados parece ser decisiva.
JA – Assim é, de facto. O interesse público é de tal forma que as leis eleitorais dão aos delegados – que, sublinhe-se, podem ser designados pelos mandatários das candidaturas até ao próprio dia, inclusive, do acto eleitoral – um estatuto privilegiado. Há uma espécie de imunidade para o delegado, porque se assim não fosse podia ser impedida a fiscalização. O delegado tem o direito a ocupar lugar onde seja permitido ver todas as operações da mesa, o direito a protestar, a reclamar – e não os membros das mesas –, a consultar a documentação, e quem se opuser ao exercício desses direitos comete um crime.
É portanto um papel diverso do assumido pelos membros das mesas.
JA – A diferença de posicionamento entre o delegado e o membro da mesa é que é suposto que quem participa numa mesa é uma espécie de funcionário público por um dia, ou seja isento, como um juiz.
Ora o delegado está lá para defender os interesses da candidatura que representa. Esse é o seu objectivo central: opor-se aos que a queiram prejudicar.
Agora muito importante para que o papel do delegado tenha êxito é que assuma uma postura o mais calma e plácida possível. Se há alguma coisa que é irregular, tentar ver se cessa. Se não cessa, escreve (há um formulário que a CNE disponibiliza), mas nunca deve entrar em discussão.
Importante é saber também que o delegado não precisa de ser eleitor daquele local, como sucede com o membro da mesa que, esse sim, tem de corresponder àquela assembleia de voto. Assim, se se suspeita que num dado sítio (onde não temos gente) possa haver fraude, pode-se designar alguém doutro sítio qualquer que vá lá fiscalizar.
A anteceder o trabalho de fiscalização no dia das eleições há ainda a questão da composição das mesas.
EP – Esta é igualmente uma fase muito importante. O correcto funcionamento da mesa não é alheio à sua composição, bem pelo contrário. E há casos no processo de composição das mesas em que a CDU pode não ter força bastante para impor uma composição que garanta a isenção exigível para o seu funcionamento. Ou seja, coloca-se logo à partida um problema que é o do papel das juntas de freguesia na reunião para a composição das mesas. Diz a lei que o presidente de Junta tem de criar apenas condições para a realização da reunião e que são os delegados das forças políticas quem toma as decisões.
Essa reunião na Junta de Freguesia marca então o arranque do processo...
EP – De modo nenhum: antes define-se quais as assembleias e secções de voto, etapa em que era preciso ter alguém a acompanhar, mas que nem sempre acontece. O que significa que, logo à partida, o processo não é alvo, por assim dizer, de qualquer intervenção fiscalizadora.
Mesmo até quando os cadernos eleitorais são expostos não há a preocupação de os consultar, sabendo-se que há sempre elementos que são eliminados indevidamente por lapso. Ora não havendo consulta, depois, já não há nada a fazer.
Estes elementos anteriores ao dia do acto eleitoral têm também a sua importância.
As insuficiências, chamemos-lhe assim, no plano da fiscalização distribuem-se pelo território de forma homogénea?
EP – Não e isso tem que ver com o nível da organização do Partido. Temos em geral um número de membros de mesa e delegados que anda em paralelo com o número de freguesias em que concorremos no País.
Há, portanto, uma correlação entre as dificuldade de organização e a ausência de fiscalização do processo eleitoral.
«Há muita coisa torcida»
São conhecidas as fraudes eleitorais eleitorais praticadas durante o fascismo. Claro que hoje não há nada de comparável.
JA – Embora não seja comparável com qualquer coisa que ocorra hoje, convém ter presente o que era o arremedo de «eleições» antes do 25 Abril. Em si mesmas as eleições antes do 25 de Abril eram uma farsa, uma fraude em si mesmas.
Essa fraude hoje, obviamente, não pode existir. Mas admite–se que haja outras.
JA – São várias as possibilidades. Até a partir do processo de recenseamento se não houver atenção e fiscalização e se houver alguém que não tenha os escrúpulos necessários no exercício de funções públicas (há conhecimento de transferências de residência duvidosas, sobretudo por ocasião de eleições autárquicas – gente a morar no estaleiro de uma Câmara, por exemplo). Não é por acaso que a Constituição consagra a obrigatoriedade de haver recenseamento eleitoral como forma de garantir com toda a certeza o direito dos cidadãos a votarem ou a serem eleitos e também que ninguém vota mais do que uma vez. Mas é óbvio que se não houver fiscalização do recenseamento podem ocorrer erros – estamos a falar de cerca de nove milhões de cidadãos – e, como as pessoas não verificam, acabam por deixar que esses erros se acumulem. E pode amanhã, alguém, fazer fraudes.
Mas é apenas na fase de recenseamento que se admite a possibilidade de ocorrência de fraudes?
J A – Claro que não. Há círculos eleitorais com muitos eleitores onde não há registo de nenhuma reclamação ou um único protesto. Isto é estranhíssimo. Não posso ter 800, 1000, 2000 mesas de voto e não ter havido um único incidente, tudo ter corrido na perfeição mais absoluta.
Isso pode significar que não houve eventualmente capacidade de fiscalização da parte das candidaturas ou que ocorreram impedimentos ao exercício dessa fiscalização. Ou que mesmo não tendo havido impedimento não houve registo nem ficaram as notas para depois poderem ser apreciadas. Ou seja, aponta para uma coisa que começa a ser duvidosa.
EP – 50 eleitores a mais numa secção de voto em que a mesa é homogénea, permite, se assim o entenderem, no final do dia, pôr mais 50 boletins de voto na urna e ir ao caderno, aos nomes que eles conhecem – que ou não estão lá (no lugar) ou não votaram –, e no final, bate tudo certo: os cadernos eleitorais estão certos, tal como as cruzinhas a assinalar os que votaram.
Nada contudo que possa pôr em causa o resultado final…
JA – Não há a sensação de que os resultados globais das eleições sejam fraudulentos, digamos assim. Agora que há muita coisa torcida, aqui e além, particularmente em eleições autárquicas, onde os universos são mais pequeninos e um voto conta – e já contou muitas vezes – para decidir o resultado de uma eleição, a eleição de um deputado. Isso toda a gente percebe. Sabe–se, por exemplo, que, quando há uma recontagem de votos, aparecem boletins, em especial com o voto na CDU, contados nos pacotes do PS e do PSD, por exemplo. E também é frequente aparecerem votos nulos onde alguém usou canetas de duas cores...
Fala–se muito também dos eleitores fantasmas.
JA – A convicção que há na CNE é a de que o grande número de eleitores inscritos no recenseamento eleitoral, para além daquilo que seria expectável em termos da população residente com mais de 17 anos, se justifica essencialmente por causa do número de emigrantes que mantêm a residência na sua terra, pelo que há aldeias onde há mais recenseados do que residentes. Por si só, não é, por conseguinte, uma coisa que indique que se esteja perante uma situação fraudulenta.
Não podemos ignorar, entretanto, outros factores que pesam na decisão do cidadão e que definem também a justeza ou não de uma eleição.
JA – A começar, diria, pelas condições existentes para se fazer propaganda. Mas também no plano da comunicação social com a aprovação do tratamento jornalístico das candidaturas. A submissão dos princípios de não discriminação e igualdade de tratamento aos critérios editoriais é um factor de condicionamento da formação de opinião e do direito de cada cidadão a uma opção eleitoral livre e consciente. O que vai degradando a qualidade da nossa democracia, neste aspecto e em muitos outros.
Leis das mais avançadas
Falemos agora do nosso sistema eleitoral. Nele residem também as causas de algumas das insuficiências e dificuldades existentes?
JA – Nós temos um dos sistemas eleitorais democráticos burgueses talvez dos mais avançados e equilibrados. Em que as garantias de transparência – a forma como são executadas, essa é outra coisa – e de fiscalização, a própria forma como se constituem as autoridades de administração eleitoral, e um conjunto de princípios para as leis eleitorais que a nossa Constituição consagra, possibilitam um quadro aceitável de liberdade e justiça, e que é dos mais avançados do chamado mundo ocidental.
E aquilo que os do «benchmarking» andam a fazer para sermos iguais aos suecos, aos ingleses, e outros, é recuar nessas características e pôr isto menos democrático, menos garantido, menos livre e justo.
A existência dos problemas referidos não remete no entanto para a necessidade de mexer na lei, ou remete?
JA – Volta e meia, fala-se que noutros países a lei é melhor, como no Reino Unido. Ora este nem recenseamento eleitoral tem. O nosso sistema, democrático formal, é aceitável. A questão não está, pois, nas leis. Aliás, sempre que mexem nelas fica pior.
O importante mesmo é então garantir uma fiscalização o melhor e o mais eficaz possível.
EP – A verdade é que, em teoria, se conseguíssemos com a nossa acção fiscalizadora eliminar todas as fraudes, nem assim poderíamos dizer que está garantido o sentido genuíno do voto. Porque a montante, os condicionamentos são tais que impedem esse desiderato. Agora a fiscalização é sem dúvida da maior importância para impedir que se somem às mais variadas condicionantes que precedem a eleição – da comunicação social, económicas, patronais, etc. – as fraudes que possam ocorrer durante o acto eleitoral.