Fraudes, irregularidades e condicionamentos no processo eleitoral

Fiscalizar é crucial para a verdade do voto

João Chasqueira

É bem co­nhe­cida a farsa que era no nosso País o pro­cesso elei­toral no fas­cismo. «Elei­ções» em que era comum a cha­pe­lada, em que até os mortos e au­sentes vo­tavam pela mão de le­gi­o­ná­rios, em que os opo­si­tores eram ba­nidos dos ca­dernos, as mesas de voto se­lec­ti­va­mente es­co­lhidas, as con­ta­gens vi­ci­adas.
Al­te­rada que foi ra­di­cal­mente esta re­a­li­dade com a Re­vo­lução do 25 de Abril, nem por isso foi er­ra­di­cado por com­pleto o quadro de graves li­mi­ta­ções ao exer­cício das li­ber­dades de­mo­crá­ticas por parte das forças re­ac­ci­o­ná­rias e con­ser­va­doras. Boi­cotes a ses­sões de es­cla­re­ci­mento, ac­ções de in­ti­mi­dação e co­ação, ile­ga­li­dades de va­riada ordem, dis­cri­mi­nação e si­len­ci­a­mento pela co­mu­ni­cação so­cial, abuso de poder, pres­sões re­li­gi­osas contam-se entre as prá­ticas aten­ta­tó­rias ao sen­tido ge­nuíno do voto dos por­tu­gueses que es­ti­veram pre­sentes em muitos actos elei­to­rais já em de­mo­cracia.
Mas será que faz sen­tido, hoje, 41 anos de­pois da Re­vo­lução do 25 de Abril, abordar este tema? Será que o risco de prá­ticas frau­du­lentas é assim tão grande que jus­ti­fique uma atenção re­no­vada na fis­ca­li­zação do pro­cesso elei­toral por forma a ga­rantir o mais pos­sível a ver­dade do es­cru­tínio, no res­peito pela von­tade dos por­tu­gueses?
A res­posta a estas ques­tões é clara: faz todo o sen­tido e há todas as ra­zões para trazer o tema para pri­meiro plano. Mais ainda, agora, que es­tamos a pouco mais de um mês dessa ba­talha im­por­tan­tís­sima que são as le­gis­la­tivas do pró­ximo dia 4 de Ou­tubro. Sobre isso não têm qual­quer dú­vida os nossos in­ter­lo­cu­tores, Eu­génio Pisco, membro do CC e da Co­missão Elei­toral do PCP, e João Al­meida, membro da Co­missão Na­ci­onal de Elei­ções, in­di­cado pelo PCP.
E foi exac­ta­mente por aí que co­meçou a en­tre­vista dada por ambos ao Avante!.

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Por que razão con­tinua a ser tão im­por­tante falar de fis­ca­li­zação nas elei­ções?

Eu­génio Pisco – Em muita gente criou-se a ideia de que, hoje, esta questão não tem as mesmas exi­gên­cias do pas­sado. E também essa outra ideia de que a mesa elei­toral se trans­formou em es­paço de con­vívio, quase (ou mesmo) de pe­tis­queira, onde todos os mem­bros das mesas estão ir­ma­nados dos mesmos ob­jec­tivos, todos são bons ra­pazes.

Quando há pro­blemas, é que são elas...

Ora a com­pre­ensão da im­por­tância da fis­ca­li­zação elei­toral é uma questão cen­tral.

As mais re­centes elei­ções na Ma­deira assim o de­mons­traram…

João Al­meida – Na Ma­deira o que houve foi um pro­blema in­for­má­tico que foi em­po­lado, em­po­la­mento esse uti­li­zado para abafar os pro­blemas reais que ocor­reram nesse pro­cesso elei­toral.

A ver­dade é que não foi pos­sível à CDU ga­rantir a fis­ca­li­zação em muitas mesas. A com­provar essa de­fi­ci­ente fis­ca­li­zação está a dis­cre­pância entre actas e edi­tais, a au­sência de pro­testos e re­cla­ma­ções. Houve re­sul­tados ab­surdos que ti­veram de ser cor­ri­gidos na as­sem­bleia de apu­ra­mento. As­sistiu-se a um dé­fice de fis­ca­li­zação e a uma pressão forte para que esta não se fi­zesse. O que de­ter­minou que, por uma di­fe­rença de cinco votos, a CDU ti­vesse menos um de­pu­tado, de­pu­tado esse que ti­raria a mai­oria ab­so­luta ao PSD.

É assim da maior im­por­tância a for­ma­li­zação das re­cla­ma­ções, dos pro­testos e seus fun­da­mentos, no de­curso da vo­tação, bem como do apu­ra­mento de re­sul­tados quer na as­sem­bleia local quer de­pois na as­sem­bleia de apu­ra­mento geral.

É aí que entra o papel dos mem­bros das mesas e dos de­le­gados.

EP – Quem pode pro­testar são os de­le­gados e não os mem­bros das mesas. E é com base nesses pro­testos que se pro­nuncia a as­sem­bleia de apu­ra­mento geral. As ocor­rên­cias que não te­nham sido ob­jecto de re­cla­mação no mo­mento pró­prio, de­pois, já nada há que as possa al­terar.

Daí a im­por­tância e o papel as­su­mido pelos de­le­gados.

Outra ideia que per­passa em muitas or­ga­ni­za­ções do Par­tido é a de que se já temos ele­mentos nas mesas, então, está a coisa feita, não é pre­ciso mais nada. E só se houver gente dis­po­nível, é que se pre­enche o lugar de de­le­gado. Ora isto é er­rado.

Vamos a exem­plos con­cretos de si­tu­a­ções mais co­muns e que le­vantam pro­blemas.

EP – O pro­blema do voto acom­pa­nhado. Esta é uma das ques­tões mais de­li­cadas e que está per­fei­ta­mente ti­pi­fi­cada. Pode servir para tudo, para acom­pa­nhar uma pessoa que tem de facto di­fi­cul­dades, ou pode servir para levar os idosos todos de um qual­quer lar a votar numa de­ter­mi­nada força po­lí­tica a mando do ca­cique local.

E quando isto acon­tece e a questão é le­van­tada, nal­guns casos, os seus pro­ta­go­nistas dizem: «isto sempre foi assim». E o sempre foi assim faz com que nal­gumas zonas isso se ins­titua como prá­tica.

JA – Outra questão que se co­loca e é mo­tivo de al­guma con­fusão é a in­ter­venção di­recta dos pre­si­dentes de Junta de Fre­guesia para subs­ti­tuir mem­bros de mesa que não es­tejam logo às sete da manhã, para in­ter­ferir nos tra­ba­lhos e dar or­dens às mesas ou para pres­si­onar os elei­tores.

EP –Em muitos sí­tios su­cede também que já nin­guém exibe a urna, porque toda a gente confia em toda a gente. Isto re­vela uma ten­dência na­tural para sim­pli­ficar os pro­ce­di­mentos, so­bre­tudo as for­ma­li­dades que pa­recem não ser ne­ces­sá­rias. E isso é grave. Porque se em 80 por cento dos casos é mesmo assim, porque toda a gente confia em toda a gente, ha­verá sempre casos em que assim não é e, por­tanto, o me­lhor é fazer como está na lei.

Outro pro­blema que não é assim tão in­comum, ao que sa­bemos, prende–se com a co­lo­cação da ca­bine de voto.

JA – Há de facto muitos pe­quenos pro­blemas como esse. A câ­mara de voto não existe para ga­rantir a vi­gi­lância dos elei­tores. Se for pos­sível ga­rantir que não acon­tecem pres­sões quando votam duas pes­soas ao mesmo tempo, muito bem, mas a câ­mara de voto deve estar co­lo­cada de tal forma que qual­quer ci­dadão que vai votar sinta que nin­guém pode ver o que está a fazer. Esse é o pri­meiro e prin­cipal ob­jec­tivo.

Às vezes, num sítio ou noutro, apa­rece outro pro­blema que é o de a mesa ad­mitir a votar quem não está ins­crito ou re­cen­seado. Ora isso é ab­so­lu­ta­mente proi­bido. Há uma de­li­be­ração da CNE que ad­mite que se faça cor­rec­ções, mas apenas em casos de erros ma­te­riais.

Outra questão que por vezes ocorre é a mesa deixar votar ci­da­dãos sem que se iden­ti­fi­quem. É evi­dente que a lei per­mite que um ci­dadão que não leve iden­ti­fi­cação ne­nhuma possa votar. Pode fazê-lo de duas ma­neiras: todos os mem­bros da mesa co­nhecem aquela pessoa; ou quando dois ci­da­dãos digam que ele é de facto aquela pessoa. Isso deve ficar tudo la­vrado em acta. Mas isto são ex­cep­ções.

E o que fazer quando há um en­gano das pes­soas no pre­en­chi­mento do bo­letim de voto?

JA – Isso não tem a ver com fraude, mas afecta as pes­soas. Muitas anulam o voto quando isso acon­tece, ha­vendo ou­tras que o tentam levar ou levam mesmo para casa, es­con­dido, e não votam. Ora isso deve ser es­cla­re­cido: as pes­soas quando se en­ganam têm di­reito a cor­rigir, trocar o bo­letim onde se en­ganou por outro.

Trans­portar a urna para a rua pa­rece não ser também uma si­tu­ação iné­dita…

EP – Este é um pro­blema que está a mon­tante, ou seja na es­colha do es­paço onde vai fun­ci­onar a secção de voto. Se numa de­ter­mi­nada lo­ca­li­dade é mon­tada a secção de voto num pri­meiro andar, sem ele­vador, já se sabe que não estão pre­en­chidas as con­di­ções fun­ci­o­nais para que pes­soas com mo­bi­li­dade re­du­zida possam exercer o seu di­reito de voto. Nestas cir­cuns­tân­cias em que isto não foi tido em conta – se ca­lhar em al­guns casos in­ten­ci­o­nal­mente –, há si­tu­a­ções em que vem a urna acom­pa­nhada dos mem­bros da mesa e de­le­gados à porta do edi­fício para votar. Ora isto não é per­mi­tido.

Vol­tando ao voto acom­pa­nhado, este pa­rece ser dos pro­blemas que ocorre mais fre­quen­te­mente e que pro­voca mai­ores danos à in­te­gri­dade do acto elei­toral.

JA – Par­ti­cu­lar­mente em zonas onde a CDU não tem grande in­fluência. A Cons­ti­tuição diz que o voto é pes­soal, não per­mite o voto por pro­cu­ração. Em casos ab­so­lu­ta­mente ex­tremos, em que a pessoa não con­segue fazer as ope­ra­ções ma­te­riais para con­cre­tizar a sua von­tade, po­derá ser outro a fazer essas ope­ra­ções por ele.

É fre­quente as mesas dei­xarem votar desta forma idosos, anal­fa­betos, re­for­mados, que vêem e podem fazer a cruz no bo­letim so­zi­nhos. E quem vota por todas estas pes­soas cos­tumam ser ou­tras que têm uma pre­pon­de­rância qual­quer sobre elas e que votam à sua ma­neira.

Ora não é de todo em todo ad­mis­sível que as mesas per­mitam que al­guém vá votar por 30 pes­soas. Que todas as pes­soas só te­nham aquela como a única pessoa da sua con­fi­ança. Isto só acon­tece porque as mesas são co­ni­ventes e nin­guém pro­testa.

Estão iden­ti­fi­cados ou­tros pro­blemas ou in­ci­dentes na vo­tação?

JA – A pre­sença dos can­di­datos também pode ser um pro­blema. Têm di­reito a fis­ca­lizar tudo e até a re­correr e re­clamar. O en­ten­di­mento da CNE é esse, que os can­di­datos têm todo o di­reito de ve­ri­ficar as ope­ra­ções, mas que per­ma­neçam o menos tempo pos­sível e que en­quanto estão se com­portem de forma a não pres­si­o­narem, mesmo in­di­rec­ta­mente, os elei­tores.

E a questão do voto an­te­ci­pado?

EP – Há ne­ces­si­dade de não perder de vista a im­por­tância da fis­ca­li­zação do voto an­te­ci­pado, em­bora isto co­loque pro­blemas como é o de obrigar à pre­sença de um de­le­gado na Câ­mara Mu­ni­cipal du­rante cinco dias.

O de­ci­sivo papel dos de­le­gados

 

Como é em geral a ac­tu­ação dos mem­bros das mesas e de­le­gados face aos in­ci­dentes que ocorrem?

EP – A grande questão está em saber como é que os nossos de­le­gados e mem­bros das mesas estão cons­ci­entes do seu papel, se do­minam aquelas que são as exi­gên­cias le­gais acerca do fun­ci­o­na­mento da vo­tação, e se estão à-von­tade para saber quando é pre­ciso agir. Não es­tando, muitas vezes, en­co­lhem-se e per­mitem que acon­teçam si­tu­a­ções ir­re­gu­lares du­rante a vo­tação, sem qual­quer pro­testo ou re­cla­mação.

Ora acon­tece que a apre­ci­ação de ir­re­gu­la­ri­dades ocor­ridas du­rante o acto elei­toral só se efectua na as­sem­bleia de apu­ra­mento se tiver ha­vido as cor­res­pon­dentes re­cla­ma­ções por parte dos de­le­gados.

A pre­pa­ração dos nossos mem­bros das mesas e de­le­gados é assim da maior im­por­tância. Co­nhe­cerem o que a lei de­ter­mina é fun­da­mental para o seu bom de­sem­penho.

Neste con­texto, a acção dos de­le­gados pa­rece ser de­ci­siva.

JA – Assim é, de facto. O in­te­resse pú­blico é de tal forma que as leis elei­to­rais dão aos de­le­gados – que, su­blinhe-se, podem ser de­sig­nados pelos man­da­tá­rios das can­di­da­turas até ao pró­prio dia, in­clu­sive, do acto elei­toral – um es­ta­tuto pri­vi­le­giado. Há uma es­pécie de imu­ni­dade para o de­le­gado, porque se assim não fosse podia ser im­pe­dida a fis­ca­li­zação. O de­le­gado tem o di­reito a ocupar lugar onde seja per­mi­tido ver todas as ope­ra­ções da mesa, o di­reito a pro­testar, a re­clamar – e não os mem­bros das mesas –, a con­sultar a do­cu­men­tação, e quem se opuser ao exer­cício desses di­reitos co­mete um crime.

É por­tanto um papel di­verso do as­su­mido pelos mem­bros das mesas.

JA – A di­fe­rença de po­si­ci­o­na­mento entre o de­le­gado e o membro da mesa é que é su­posto que quem par­ti­cipa numa mesa é uma es­pécie de fun­ci­o­nário pú­blico por um dia, ou seja isento, como um juiz.

Ora o de­le­gado está lá para de­fender os in­te­resses da can­di­da­tura que re­pre­senta. Esse é o seu ob­jec­tivo cen­tral: opor-se aos que a queiram pre­ju­dicar.

Agora muito im­por­tante para que o papel do de­le­gado tenha êxito é que as­suma uma pos­tura o mais calma e plá­cida pos­sível. Se há al­guma coisa que é ir­re­gular, tentar ver se cessa. Se não cessa, es­creve (há um for­mu­lário que a CNE dis­po­ni­bi­liza), mas nunca deve en­trar em dis­cussão.

Im­por­tante é saber também que o de­le­gado não pre­cisa de ser eleitor da­quele local, como su­cede com o membro da mesa que, esse sim, tem de cor­res­ponder àquela as­sem­bleia de voto. Assim, se se sus­peita que num dado sítio (onde não temos gente) possa haver fraude, pode-se de­signar al­guém doutro sítio qual­quer que vá lá fis­ca­lizar.

A an­te­ceder o tra­balho de fis­ca­li­zação no dia das elei­ções há ainda a questão da com­po­sição das mesas.

EP – Esta é igual­mente uma fase muito im­por­tante. O cor­recto fun­ci­o­na­mento da mesa não é alheio à sua com­po­sição, bem pelo con­trário. E há casos no pro­cesso de com­po­sição das mesas em que a CDU pode não ter força bas­tante para impor uma com­po­sição que ga­ranta a isenção exi­gível para o seu fun­ci­o­na­mento. Ou seja, co­loca-se logo à par­tida um pro­blema que é o do papel das juntas de fre­guesia na reu­nião para a com­po­sição das mesas. Diz a lei que o pre­si­dente de Junta tem de criar apenas con­di­ções para a re­a­li­zação da reu­nião e que são os de­le­gados das forças po­lí­ticas quem toma as de­ci­sões.

Essa reu­nião na Junta de Fre­guesia marca então o ar­ranque do pro­cesso...

EP – De modo ne­nhum: antes de­fine-se quais as as­sem­bleias e sec­ções de voto, etapa em que era pre­ciso ter al­guém a acom­pa­nhar, mas que nem sempre acon­tece. O que sig­ni­fica que, logo à par­tida, o pro­cesso não é alvo, por assim dizer, de qual­quer in­ter­venção fis­ca­li­za­dora.

Mesmo até quando os ca­dernos elei­to­rais são ex­postos não há a pre­o­cu­pação de os con­sultar, sa­bendo-se que há sempre ele­mentos que são eli­mi­nados in­de­vi­da­mente por lapso. Ora não ha­vendo con­sulta, de­pois, já não há nada a fazer.

Estes ele­mentos an­te­ri­ores ao dia do acto elei­toral têm também a sua im­por­tância.

As in­su­fi­ci­ên­cias, cha­memos-lhe assim, no plano da fis­ca­li­zação dis­tri­buem-se pelo ter­ri­tório de forma ho­mo­génea?

EP – Não e isso tem que ver com o nível da or­ga­ni­zação do Par­tido. Temos em geral um nú­mero de mem­bros de mesa e de­le­gados que anda em pa­ra­lelo com o nú­mero de fre­gue­sias em que con­cor­remos no País.

Há, por­tanto, uma cor­re­lação entre as di­fi­cul­dade de or­ga­ni­zação e a au­sência de fis­ca­li­zação do pro­cesso elei­toral.

«Há muita coisa tor­cida»

 

São co­nhe­cidas as fraudes elei­to­rais elei­to­rais pra­ti­cadas du­rante o fas­cismo. Claro que hoje não há nada de com­pa­rável.

 

JA – Em­bora não seja com­pa­rável com qual­quer coisa que ocorra hoje, convém ter pre­sente o que era o ar­re­medo de «elei­ções» antes do 25 Abril. Em si mesmas as elei­ções antes do 25 de Abril eram uma farsa, uma fraude em si mesmas.

 

Essa fraude hoje, ob­vi­a­mente, não pode existir. Mas ad­mite–se que haja ou­tras.

 

JA – São vá­rias as pos­si­bi­li­dades. Até a partir do pro­cesso de re­cen­se­a­mento se não houver atenção e fis­ca­li­zação e se houver al­guém que não tenha os es­crú­pulos ne­ces­sá­rios no exer­cício de fun­ções pú­blicas (há co­nhe­ci­mento de trans­fe­rên­cias de re­si­dência du­vi­dosas, so­bre­tudo por oca­sião de elei­ções au­tár­quicas – gente a morar no es­ta­leiro de uma Câ­mara, por exemplo). Não é por acaso que a Cons­ti­tuição con­sagra a obri­ga­to­ri­e­dade de haver re­cen­se­a­mento elei­toral como forma de ga­rantir com toda a cer­teza o di­reito dos ci­da­dãos a vo­tarem ou a serem eleitos e também que nin­guém vota mais do que uma vez. Mas é óbvio que se não houver fis­ca­li­zação do re­cen­se­a­mento podem ocorrer erros – es­tamos a falar de cerca de nove mi­lhões de ci­da­dãos – e, como as pes­soas não ve­ri­ficam, acabam por deixar que esses erros se acu­mulem. E pode amanhã, al­guém, fazer fraudes.

 

Mas é apenas na fase de re­cen­se­a­mento que se ad­mite a pos­si­bi­li­dade de ocor­rência de fraudes?

 

J A – Claro que não. Há cír­culos elei­to­rais com muitos elei­tores onde não há re­gisto de ne­nhuma re­cla­mação ou um único pro­testo. Isto é es­tra­nhís­simo. Não posso ter 800, 1000, 2000 mesas de voto e não ter ha­vido um único in­ci­dente, tudo ter cor­rido na per­feição mais ab­so­luta.

 

Isso pode sig­ni­ficar que não houve even­tu­al­mente ca­pa­ci­dade de fis­ca­li­zação da parte das can­di­da­turas ou que ocor­reram im­pe­di­mentos ao exer­cício dessa fis­ca­li­zação. Ou que mesmo não tendo ha­vido im­pe­di­mento não houve re­gisto nem fi­caram as notas para de­pois po­derem ser apre­ci­adas. Ou seja, aponta para uma coisa que co­meça a ser du­vi­dosa.

 

EP – 50 elei­tores a mais numa secção de voto em que a mesa é ho­mo­génea, per­mite, se assim o en­ten­derem, no final do dia, pôr mais 50 bo­le­tins de voto na urna e ir ao ca­derno, aos nomes que eles co­nhecem – que ou não estão lá (no lugar) ou não vo­taram –, e no final, bate tudo certo: os ca­dernos elei­to­rais estão certos, tal como as cru­zi­nhas a as­si­nalar os que vo­taram.

 

Nada con­tudo que possa pôr em causa o re­sul­tado final…

 

JA – Não há a sen­sação de que os re­sul­tados glo­bais das elei­ções sejam frau­du­lentos, di­gamos assim. Agora que há muita coisa tor­cida, aqui e além, par­ti­cu­lar­mente em elei­ções au­tár­quicas, onde os uni­versos são mais pe­que­ninos e um voto conta – e já contou muitas vezes – para de­cidir o re­sul­tado de uma eleição, a eleição de um de­pu­tado. Isso toda a gente per­cebe. Sabe–se, por exemplo, que, quando há uma re­con­tagem de votos, apa­recem bo­le­tins, em es­pe­cial com o voto na CDU, con­tados nos pa­cotes do PS e do PSD, por exemplo. E também é fre­quente apa­re­cerem votos nulos onde al­guém usou ca­netas de duas cores...

 

Fala–se muito também dos elei­tores fan­tasmas.

 

JA – A con­vicção que há na CNE é a de que o grande nú­mero de elei­tores ins­critos no re­cen­se­a­mento elei­toral, para além da­quilo que seria ex­pec­tável em termos da po­pu­lação re­si­dente com mais de 17 anos, se jus­ti­fica es­sen­ci­al­mente por causa do nú­mero de emi­grantes que mantêm a re­si­dência na sua terra, pelo que há al­deias onde há mais re­cen­se­ados do que re­si­dentes. Por si só, não é, por con­se­guinte, uma coisa que in­dique que se es­teja pe­rante uma si­tu­ação frau­du­lenta.

 

Não po­demos ig­norar, en­tre­tanto, ou­tros fac­tores que pesam na de­cisão do ci­dadão e que de­finem também a jus­teza ou não de uma eleição.

 

JA – A co­meçar, diria, pelas con­di­ções exis­tentes para se fazer pro­pa­ganda. Mas também no plano da co­mu­ni­cação so­cial com a apro­vação do tra­ta­mento jor­na­lís­tico das can­di­da­turas. A sub­missão dos prin­cí­pios de não dis­cri­mi­nação e igual­dade de tra­ta­mento aos cri­té­rios edi­to­riais é um factor de con­di­ci­o­na­mento da for­mação de opi­nião e do di­reito de cada ci­dadão a uma opção elei­toral livre e cons­ci­ente. O que vai de­gra­dando a qua­li­dade da nossa de­mo­cracia, neste as­pecto e em muitos ou­tros.

 

Leis das mais avan­çadas

 

Fa­lemos agora do nosso sis­tema elei­toral. Nele re­sidem também as causas de al­gumas das in­su­fi­ci­ên­cias e di­fi­cul­dades exis­tentes?

 

JA – Nós temos um dos sis­temas elei­to­rais de­mo­crá­ticos bur­gueses talvez dos mais avan­çados e equi­li­brados. Em que as ga­ran­tias de trans­pa­rência – a forma como são exe­cu­tadas, essa é outra coisa – e de fis­ca­li­zação, a pró­pria forma como se cons­ti­tuem as au­to­ri­dades de ad­mi­nis­tração elei­toral, e um con­junto de prin­cí­pios para as leis elei­to­rais que a nossa Cons­ti­tuição con­sagra, pos­si­bi­litam um quadro acei­tável de li­ber­dade e jus­tiça, e que é dos mais avan­çados do cha­mado mundo oci­dental.

 

E aquilo que os do «ben­ch­mar­king» andam a fazer para sermos iguais aos su­ecos, aos in­gleses, e ou­tros, é re­cuar nessas ca­rac­te­rís­ticas e pôr isto menos de­mo­crá­tico, menos ga­ran­tido, menos livre e justo.

 

A exis­tência dos pro­blemas re­fe­ridos não re­mete no en­tanto para a ne­ces­si­dade de mexer na lei, ou re­mete?

 

JA – Volta e meia, fala-se que nou­tros países a lei é me­lhor, como no Reino Unido. Ora este nem re­cen­se­a­mento elei­toral tem. O nosso sis­tema, de­mo­crá­tico formal, é acei­tável. A questão não está, pois, nas leis. Aliás, sempre que mexem nelas fica pior.

 

O im­por­tante mesmo é então ga­rantir uma fis­ca­li­zação o me­lhor e o mais eficaz pos­sível.

 

EP – A ver­dade é que, em te­oria, se con­se­guís­semos com a nossa acção fis­ca­li­za­dora eli­minar todas as fraudes, nem assim po­de­ríamos dizer que está ga­ran­tido o sen­tido ge­nuíno do voto. Porque a mon­tante, os con­di­ci­o­na­mentos são tais que im­pedem esse de­si­de­rato. Agora a fis­ca­li­zação é sem dú­vida da maior im­por­tância para im­pedir que se somem às mais va­ri­adas con­di­ci­o­nantes que pre­cedem a eleição – da co­mu­ni­cação so­cial, eco­nó­micas, pa­tro­nais, etc. – as fraudes que possam ocorrer du­rante o acto elei­toral.