Dia após dia

Correia da Fonseca

Em terreno incerto, lamacento ou pantanoso, é preciso pisar com cautelas: de cada vez que se arrisque avançar um passo é importante avaliar a consistência do solo, a confiança que ele merece ou não, coisas assim. Com perdão da metáfora tosca, poderá dizer-se que idênticos cuidados se impõem ao telespectador que se arrisca a informar-se pela TV do que vai pelo mundo e pelo seu País. É desolador que seja assim, mas não se pode nem se deve fugir à realidade ou sequer esquecê-la. Poderá dizer-se, e bem, que também surge nos televisores quem venha lembrar verdades como punhos e desminta imposturas, mas acontece que entre a verdade e o ludíbrio o balanço é desolador. Não porque nunca sejam transmitidos programas ou momentos em que a lucidez possa apoiar-se (numa das suas admiráveis quadras, o António Aleixo lembrou-nos como a mentira tem de conter uma dose de verdade para que se torne inteiramente eficaz), mas porque a regra geral é a da anestesia dos cidadãos misturada em sábias doses com a supressão de verdades fundamentais e a injecção de aldrabices. Nada disto é novidade, bem se sabe, lembrá-lo pode parecer ocioso. A questão, porém, é que até os mais avisados podem incorrer no esquecimento do que sabem quando são bombardeados dia após dia com repetidas e obstinadas falsificações. Todas as resistências a longo prazo tendem a quebrar-se ou, no mínimo, a fragilizar-se; por isso é que à generalidade dos resistentes é consensual atribuir a pelo menos tendencial condição de heróis. Assim, bem se pode dizer que o telespectador que ao longo de anos suporta quotidianos bombardeamentos de intrujices sem que se deixe infectar por elas merece ser considerado como estando em área introdutória de uma forma especial de heroicidade.

Velocidade 17

Felizmente para a salubridade dos cabecinhas dos cidadãos telespectadores, acontece não poucas vezes que uma informação verdadeira e significativa, embora prestada apenas como de passagem, abala um majestoso edifício de mentira construído ao longo de meses. Foi o caso de uma informação discreta dada pela televisão num destes dias, decerto na sequência de um dado oriundo de um organismo público: segundo ela, ao longo do primeiro semestre do ano em curso encerraram em Portugal cerca de 2500 empresas, o que corresponde à velocidade de, aproximadamente, 14 empresas por dia, 17 se no fácil cálculo deduzirmos os dias não úteis. A partir daqui, atribuamos por cada empresa encerrada o número de quatro trabalhadores que passam para a situação de desempregados, estimativa que não parece exagerada mesmo que se admita que se terá tratado de pequenas ou médias empresas: chegamos ao número de 10 mil novos desempregados, e não será pessimismo excessivo admitir que lhes será difícil o reemprego. Mas ainda não acabaram as nossas contas: pensemos no agregado familiar de cada um desses trabalhadores, admitamos que esse agregado é constituído por quatro pessoas e encontramos o número de 40 mil portugueses que no breve período de seis meses ingressaram no pungente território da angústia. Não deverá omitir-se que muitas vezes a situação de desemprego desaba sobre um casal e que do desemprego muitas vezes decorre a ameaça de perda da habitação. Também que do desemprego surge a miragem da emigração ou mesmo que por força dele pode germinar a tentação do suicídio, epílogo que os media calam mas existe. E, como é inevitável, formula-se uma pergunta: no quadro aqui descrito a partir de um dado estatístico oficial, onde pode ser encaixada a reiterada versão do Governo segundo a qual a «retoma» está aí? Faz-se a pergunta, mas conhece-se a resposta: pode ser arrumada no amplo armazém onde se acumulam as imposturas que são a pedra e a cal desta governação. Mais uma vez, recorda-se La Fontaine: «com razões que inventam escondem/seus crimes, suas maldades». Aliás, a sabedoria das «Fables» vinha de longe, da Grécia, repare-se! Até é curioso.




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