Setenta anos depois
O fim na Europa da Segunda Guerra Mundial (as hostilidades prosseguiram na Ásia até 2 de Setembro, como se sabe) foi comemorado em Moscovo a 9 de Maio com um desfile militar, como aliás já se tornou tradicional. Desta vez, porém, tratou-se do 70.º aniversário do fim da guerra, número redondo que terá justificado uma maior ênfase na celebração, e talvez por isso o governo russo convidou os dirigentes dos países ocidentais a participarem no festejo com a sua presença em Moscovo. Obama, Cameron e Hollande não quiseram fazer a viagem, nem todos sabem ou podem ser bem-educados. Fê-la - um dia depois - Angela Merkel, a dirigente alemã que a muitos portugueses suscita, com razão ou sem ela, um tal reflexo de rejeição que em alguns deles desencadeia uma memória paracultural: a visão da chancelerina faz-lhes lembrar Ramalho Ortigão que, irreverentemente, um dia designou a rainha Vitória por «essa augusta vaca». Eram os tempos em que Portugal tinha sólidas razões de queixa da Grã-Bretanha, mas talvez não tão pesadas quanto as que diversos países europeus têm hoje da Alemanha. Passemos, porém, para regressar à Moscovo de há poucos dias: lá esteve a Merkel, no domingo, lá não estiveram os seus parceiros euroatlânticos, mas bem se pode dizer que não fizeram grande falta: a assistir ao desfile militar, ao lado de Vladimir Putin, estiveram os presidentes da China e da Índia, o que significa que a cerimónia teve a presença de três dos quatro chamados «BRICS», os países que previsivelmente dominarão a economia mundial no futuro não distante: Brasil, Rússia, Índia, China, pela ordem alfabética em que surgem na sigla. E, quanto à espectacularidade do desfile, puderam testemunhá-la os telespectadores que dele viram imagens breves nos canais portugueses ou menos breves em canais estrangeiros, designadamente no «Euronews», insuspeito de simpatia para com o país de Putin.
Flores não apagam crimes
Aconteceu mesmo que a cobertura do 70.º aniversário do fim da guerra pelo Euronews se ampliou com reportagens que vieram lembrar e sublinhar que foram os soviéticos, quer militares quer civis, que mais duramente suportaram a bestialidade nazi. Uma dessas reportagens informou-nos de que ainda hoje, setenta anos depois, ocorrem no território russo pesquisas com o objectivo de encontrarem restos mortais de vítimas da invasão hitleriana, tantas que sete décadas de buscas não foram suficientes para que a procura fosse dada como finda. Algumas das imagens incluídas na reportagem podem ser entendidas como chocantes, porventura macabras, mas convém não esquecer que esse terrível travo decorre do crime germânico cuja dimensão os actuais alemães parecem ter esquecido com alguma ligeireza mas que permanece presente na memória dos cidadãos dos países agredidos. É verdade que a assumpção dessa culpa pode ter contribuído para a presença da Merkel em Moscovo, mas essa eventualidade simpática corre o risco de ficar anulada pelas palavras que, sempre segundo a «Euronews», a excelente senhora terá debitado: que a (suposta) intervenção russa na Ucrânia «é criminosa». Como se a criatura pudesse ignorar o que clara e indesmentivelmente aconteceu: o apoio da coligação euroatlântica, provocadora e tendencialmente belicista, a um golpe criptonazi na Ucrânia, a inevitável consequência de ruptura no Leste ucraniano por parte das populações russófonas que legitimamente rejeitaram a opressão perspectivada, a consequente resistência armada. Como se a Merkel não percebesse que a estratégia do grupo transnacional em que a sua Alemanha destacadamente se integra é a do cerco à Rússia, do estímulo à sua desagregação, de agressão enfim. Com claros riscos de conflito bélico que ela não pode ignorar. Tudo, enfim, designável por uma palavra: crime. Que não pode ser apagada pela deposição de um ramo de flores no memorial de homenagem aos soldados soviéticos caídos sob o fogo da barbárie nazi, gesto simpático que a chancelerina praticou como se flores pudessem apagar infâmias, sobretudo quando não são acompanhas por actos que as mereçam.