Como as peças de um «puzzle»

Correia da Fonseca

Dia após dia, noticiário após noticiário, a televisão traz notícias do nosso País. Nenhum dos canais portugueses, abertos ou não, escolheu o sector em que o Correio da Manhã se especializou, o do crime de vária natureza e dimensão, mas ainda assim as informações vão chegando aos nossos televisores, geralmente ao ritmo diário de conta-gotas, por vezes dando sinais de se tornarem caudal. É a violência doméstica que se intensifica, são os maus tratos a velhos que se tornam mais numerosos, são cada vez mais os garotos que chegam em jejum às escolas, são os doentes idosos que são deixados nas camas hospitalares muito para lá de terem recebido alta, são os que apenas entram nas farmácias para saberem quanto lhes custará o avio da receita e logo saem sem os medicamentos, são os conflitos familiares que se multiplicam em casas exíguas onde viviam duas pessoas e vivem agora seis ou mais, são os quotidianos assaltos a residências ainda que habitadas, são os funcionários em serviço nos centros de emprego a notarem o aumento dos desistentes de encontrar um posto de trabalho, é o fluxo dos emigrantes apesar de tudo felizes por não terem de arriscar-se no Mediterrâneo mas que podem naufragar de outra maneira, é a angústia dos pais que ouvem os filhos dizerem-lhes que «não vale a pena estudar», são os pequenos estabelecimentos de comércio vário que todos os dias encontramos encerrados, é o sabido aumento da prostituição, é o muito mais que aqui não cabe ou agora não ocorre.

Num incerto dia

É certo que nem todas estas situações estão inevitavelmente presentes nos tele-noticiários que nos entram em casa, mas também não é menos certo que o breve inventário aqui feito não é exaustivo, longe disso, até porque a desgraça que se abateu sobre o País (entenda-se: que um grupo de gente sem a noção das realidades nem remorsos, entrincheirada em imposturas e falsificações, lançou sobre Portugal) como que todos os dias inventa novas formas e encontra novas vítimas. De qual modo, vamos sabendo delas pela televisão e outros media, dia a dia, como que gota a gota, dir-se-ia que para que uma dose maior não enlouqueça ninguém. De algumas ocorrências nunca haverá notícia, designadamente de quantos e quais suicídios estão a resultar da perda de emprego, de lares, de filhos emigrados, de esperança; as causas de outras ficarão imersas no nevoeiro constituído pela falta de provas ou de evidências, ficando as desgraças a boiar num pântano de suspeitas. E essas notícias quotidianas, ou que não o serão rigorosamente porque os mensageiros não queiram que nos sufoquemos ou eles próprios estejam cansados, são como peças de um terrível «puzzle» cuja imagem final é a de um País devorado por abutres. Também a televisão nos mostra que essa paisagem desolada e desoladora é como que sobrevoada por uma espécie peculiar de pássaros que, graduando-se a si próprios com a mirífica patente de salvadores da pátria, nos vêm assegurar que o que sabemos ser a miséria é o inevitável destino de um povo. Não inventam nada de novo: é sabido que sempre essa argumentação tosca foi usada por opressores e assaltantes. Mas eles não sabem nem sonham que a vida é comandada não apenas pelo sonho, como lembrou o poeta, mas também pelo instinto de sobrevivência que leva as gentes a recusar, a resistir, a vencer. Mesmo sabendo-se que a História não é como cada um de nós: não tem pressa. Mas avança. Todos os dias. Longe de nós se não ao nosso lado. Até que num incerto dia nos encontra.




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