O General

Correia da Fonseca

A oferta de programas nos canais portugueses estava tão fraca quanto é costume, pelo que muitos telespectadores optaram por ir à descoberta de melhores ou mais atractivos produtos na lista extensa, embora de diversidade mais aparente que real, de canais acessíveis por cabo. Muitos deles terão escolhido o «Euronews», porventura atraídos pela compreensível ilusão de que, tratando-se de um canal estrangeiro e mais «europeu», bem poderia ter mais amplos horizontes, e não apenas em matéria de geografia. Partiram, pois, nessa rota de presumível descoberta de novos mundos, se assim se pode dizer numa modesta coerência com as tradições nacionais, e por essa via desembocaram numa imagem que desde logo e num primeiro relance se mostrava muito decorativa dos ecrãs dos televisores. Era a imagem de um cavalheiro bem apessoado, de cabelos já a esbranquiçar numa sugestão de maturidade tendencialmente aristocrática, impecavelmente encadernado numa farda irrepreensivelmente envergada. Porém, o que mais valorizava a imagem, o que maior brilho literalmente lhe conferia, era a constelação de condecorações das mais variadas cores que se alargava sobre o lado superior esquerdo do peito, mais ou menos à altura do lugar onde é costume, por acaso errado, situar o coração. Era, sem dúvida, uma imagem impressionante. Mas entendia-se aquela profusão de cores e símbolos: aquele sujeito era um general norte-americano que aliás uma legenda identificava, e é bem sabido que os peitos do oficialato norte-americano abundam em condecorações vistosas em regra compensadoras, pelo belo espectáculo que constituem, da circunstância de felizmente não poderem ter sido conquistadas em combates perigosos e escaldantes mas sim na operosidade serena de gabinetes.

Voz e ruído de fundo

Depressa os telespectadores que tinham escolhido aquele canal ficaram a saber que o senhor general estava a falar não de qualquer ponto dos Estados Unidos mas sim de algures na Europa, porventura em Bruxelas, e que falava não dos seus States pátrios mas sim de questões europeias que sem exagero poderiam ser qualificadas de importantes, de dramáticas e de perigosas. Era a questão da Ucrânia, de outros territórios de que sumariamente se pode dizer que se situam para aqueles mesmos lados, da pulsão imperialista da Rússia, da Europa coitadinha e ameaçada. Naturalmente que também de Putin, esse sujeito de mau feitio cada vez mais equiparado ao velho e sempre temido Staline com a diferença visível de que não fuma cachimbo. Era, pois, um senhor general norte-americano a falar em plena Europa de questões europeias. Poder-se-á dizer que não era coisa de espantar e que se tratava de um fenómeno com precedentes históricos não exageradamente distantes: quem alongar a vista para algumas décadas atrás poderá encontrar-se com registos de generais a falar em terras estrangeiras, franceses em Saigão e em Argel, ingleses na Índia, portugueses em diversos lugares de África, até alemães em Paris e, embora muito mais discreto, o português António de Spínola a observar de monóculo encravado na órbita o irresistível avanço do exército nazi na União Soviética. Porém, eram em maior ou menor grau contextos de ocupação político-militar. Ora, no caso do medalhado general norte-americano, tratava-se de uma situação diferente: o senhor decerto veio «às boas», passe o plebeísmo da expressão, e não se está em situação de guerra. Aqui, porém, emergem dúvidas e apreensões. Se o objectivo é a paz, como se explica a presença e sobretudo a voz de um general, por definição um homem para a guerra? Se a Europa com capital formal em Bruxelas e factual em Berlim não está sob ocupação, por que artes (eufemismo da fórmula «por que diabo») a presença e o discurso de um general que lhe é estrangeiro? E, já agora, acrescente-se que as declarações do senhor general «made in USA» ocorrem sobre o não propriamente audível, mas ainda assim conhecido, ruído de blindados a rodarem e de aviões a voarem muito perto das fronteiras russas. Tudo a parecer estranho. E, sobretudo, preocupante.




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