O velho conto

Correia da Fonseca

O enredo é velho e é conhecido, qualquer coisa como segue. Chega a Lisboa, talvez à estação fluvial do Terreiro do Paço, talvez a Santa Apolónia, talvez a um qualquer terminal rodoviário, um cidadão de boa-fé mas pouca ou nenhuma experiência em armadilhas tecidas pela falta de escrúpulos e de vergonha. Chega e é abordado por um sujeito de bom aspecto e falas fáceis que, invocando pressas inadiáveis ou outro pretexto, lhe propõe trocar uma apetitosa quantidade de notas acondicionadas em grosso maço hermeticamente fechado pelo escasso dinheiro que o cidadão abordado transporte consigo. Parece um bom e fácil negócio, o proponente é convincente, consta por aí que as óptimas oportunidades acontecem, do que resulta a proposta ser aceite pelo recém-chegado inexperiente e a troca ser consumada: passa ele para as mãos do desconhecido todo o conteúdo que trazia na carteira, recebe nas suas mãos ávidas o maço que supõe ser de notas e depressa verificará que é apenas de pedaços de páginas do «Diário de Notícias» ou, pior ainda, do «Correio da Manhã». Fica, pois, mais pobre do que chegara, excepto numa particular sabedoria: passa a saber por ciência directa o que é o chamado Conto do Vigário, obviamente punível pelos tribunais quando todos os astros se conjuguem para tanto, sem que mesmo nesse caso as notas que lhe foram extorquidas, as autênticas, regressem ao seu poder. Porque entretanto se terão evaporado, como é próprio do seu natural destino, e a este prejuízo se acrescentarão as despesas de natureza judicial ou outras que o vigarizado terá de suportar e virão adicionar-se à perda do capital inicial.

A presença do essencial

Este é, pois, o desenho esquemático do velho e já quase mítico Conto do Vigário que, como bem se compreende, tem acolhido variações ao longo dos tempos, pois bem se sabe que a arte de intrujar o cidadão crédulo está permanentemente a integrar novos métodos, designadamente e sobretudo quando ocorre em contextos sociais em que a primeira das regras é a do desenrascanço individual a qualquer preço. Ora, nos últimos dias a televisão tem vindo a falar-nos de um caso concreto que tem todas as características fundamentais do Conto do Vigário, embora acontecido não ao ar livre, à beira de um lugar de chegada à capital, mas sim em amplas salas climatizadas e revestido por um vocabulário técnico que melhora o seu aspecto: é o escândalo da venda aos balcões do falecido BES do chamado «papel comercial», designação aliás suspeita de ser imprópria por a operação não emergir de qualquer acto de comércio corrente mas consubstanciar, isso sim, uma operação financeira. Lá está, neste caso, o essencial do Conto: a troca de dinheiro autêntico por títulos (desmaterializados ou não) que não valem nada porque ninguém aceita pagá-los. E a televisão tem trazido a nossas casas o penosíssimo espectáculo de dezenas de vítimas da fraude que se vêem despojadas do produto de décadas de trabalho e talvez de privações, a quem os protagonistas deste triste entremez negam até a palavra de esperança que lhes é devida. Banco ex-ES alcunhado de Novo, Banco ES decerto Velho e assaltado por dentro, Banco de Portugal supostamente vigilante e inevitavelmente responsável, Governo, todos se cumpliciam na recusa de responsabilidades e no aparente abandono dos lesados à sua desgraçada sorte. Quando muito, surge por vezes, esfumado, o perfil de alguns pequenos intervenientes de qualquer modo não responsabilizáveis: os empregados bancários, em dada altura agraciados com o vistoso título de «gestores de conta», que receberam dos banqueiros seus patrões ordem para impingirem a clientes confiantes o tal «papel comercial» por troca com as respectivas economias. É claro que obedeceram de boa-fé, tal como é claro que por alternativa à obediência só tinham a de procurar outro emprego. Mas dos caminhos por onde se escoou esse dinheiro, tal como dos lugares por onde prosseguem as suas vidas aqueles que o embolsaram, não nos tem falado a televisão. Adivinha-se: decerto por não ser matéria com «interesse jornalístico».




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