O drama em directo
É já uma antiga prática, verdadeiramente tradicional, que quem escreva ou por qualquer outro modo discorra acerca da televisão sublinhe que o «directo» é a forma de transmissão que verdadeiramente corresponde à essencialidade da TV e à sua capacidade para revelar o real em toda a sua integralidade, sem composições nem retoques. Em rigor, não será tanto assim: não são precisas muita perspicácia ou muita imaginação para nos apercebermos de que mesmo durante uma reportagem em directo é possível, e porventura frequente, que um desvio de câmara introduza um verdadeiro corte na «narração» que está a ser feita, que a recusa em ouvir um eventual deponente corresponda de facto a uma prevenção de carácter censório, até que a selecção de imagens a recolher e de enquadramentos a adoptar possam de facto resultar na adulteração do «real» transmitido. Não obstante, o prestígio do «directo» realizado no exterior tem subsistido ao longo dos muitos anos que a televisão já leva, tanto mais que a experiência, além do mero bom-senso, tem vindo a ensinar aos telespectadores mais atentos o que aliás é óbvio ou quase, que os programas de estúdio são mais facilmente manipuláveis em todos os seus factores: selecção dos participantes, repartição dos tempos de intervenção, escolha de documentos previamente filmados e manipulados, por aí fora. E mesmo que saibamos que já vão longe os tempos da censura formal e institucionalizada, «pura e dura», sem vergonha, também vamos sabendo que a censura tem artes de serpente e enguia para se introduzir em lugares que, se fôssemos mais ingénuos, suporíamos livres do animalejo para todo o sempre.
Uma vitória da vida
Ora, vem tudo isto a propósito de na passada semana termos podido assistir ao que terá sido o mais dramático «directo» alguma vez transmitido pela televisão portuguesa: uma decerto pequena equipa de reportagem em trabalho na Assembleia da República permitiu que as gentes de todo o País vissem e ouvissem um cidadão comum, até então desconhecido e anónimo, a pedir a um cidadão ministro que fizesse o necessário para lhe evitar a morte. Poderá dizer-se que aqueles afinal poucos minutos foram gravados, o que possibilitou a sua repetida transmissão mais tarde. Pois sim, mas ficaram intactas todas as características do «directo»: a impreparação do momento, a força apesar de tudo contida do cidadão interpelante, a mistura de pasmo e contenção do ministro interpelado, o súbito frémito de tragédia que tocou os circunstantes. Veio a saber-se mais tarde que, improvavelmente por coincidência ou mero acaso, o cidadão escapava à sentença de morte que contra ele estava lavrada e que com ele se salvariam muitos outros, que um laboratório que apostava na roleta dos proventos arriscando as vidas alheias cedera no regateio a que agora se chama braço-de-ferro. Era, para além da alegria pela vitória da vida sobre a morte decretada por interesses privados (que, sublinhe-se, são privados, portanto limitados, mesmo quando não sejam criminosamente exorbitantes), uma lição que importa registar: a de que nunca é a altura de desistir de combates que sejam justos e necessários mesmo quando as circunstâncias parecem convidar ao abandono. Isto não apenas de viver, o que de um modo geral já não é muito fácil, mas sobretudo de viver não abandonando direitos nem o combate por causas justas, pode implicar o enfrentamento de momentos difíceis, mas não é uma espécie de mercadoria susceptível de venda ou de jogo de aposta em que a desistência seja lícita. No fim, pode ser a vitória ou uma derrota que até talvez seja apenas o adiamento de uma vitória situada no futuro. Mas, de qualquer modo, até um certo sentido da honra proíbe o abandono perante a iniquidade. O «directo» dramático a que os telespectadores portugueses puderam assistir, completado com as notícias posteriores, veio testemunhar que a vitória é possível até quando parece improvável.