Brutalidades
Nem todos os telespectadores saberão da existência de um canal que é a extensão na TV de um jornal diário, o «Correio da Manhã»: é o CMTV, de resto só acessível a quem tenha contrato com o serviço MEO da PT. Parece possível, talvez provável, que o CMTV tenha escasso poder de atracção junto de parte do telepúblico que com razão ou sem ela tem do CM uma ideia pouco lisonjeira, mas neste caso como em tudo é bom não exagerar nos juízos antecipados e, sobretudo, é prudente manter abertos os caminhos por onde poderão circular eventuais excepções quando as haja. Terá sido neste entendimento que alguns telespectadores, porventura muitos, no passado domingo sintonizaram o CMTV atraídos pelo anúncio de que nesse canal, lá para o início da noite, o dr. Paulo Morais, antigo vereador PSD da Câmara do Porto que adquiriu notoriedade por se propor ser uma espécie de cruzado contra a corrupção da chamada «classe política» ao brandir contra ela a arma da denúncia pública, estaria em antena para falar de José Maria Ricciardi e de uma fabulosa remuneração por ele recebida no grupo BES já carregado de prejuízos. Os números denunciados consubstanciavam uma verdadeira brutalidade acontecida num país atolado na pobreza, com a agravante de essa chocante remuneração ainda ter sido aumentada já com aquele gigantesco grupo em pleno processo de afundamento. Era, como é óbvio, uma informação a tresandar a escândalo, qualidade em que o CM tem vindo a especializar-se tanto quanto o seu «papá» impresso, e era sem dúvida uma informação com interesse, pelo que para aquele canal terão convergido uns milhares de telespectadores, pois nisto de audiências televisivas o milhar é a normal unidade de medida, como bem se sabe.
O proveito final
Aconteceu, porém, que esses telespectadores, mais os que já teriam sintonizado o canal por integrarem o seu público habitual, tiveram a oportunidade, inesperada para todos ou quase todos eles, de assistir a um filme que com razão ou sem ela talvez não esperassem encontrar no CMTV: intitulava-se «Aconteceu na Argentina», era interpretado nos principais papéis por António Banderas e Claire Bloom (sim, a «imposta» por Chaplin em Luzes da Ribalta!) e não foi possível saber desde logo o nome do realizador constante do genérico final porque nessa altura a publicidade estava cheia de pressa para entrar em antena. Mais tarde foi possível saber por outras vias que «Aconteceu na Argentina» foi realizado em 2003 por Christopher Hampton. O importante, contudo, é que a sua acção decorria na Argentina dominada pelos militares nazi-fascistas que ficaram na História pelas enormes bestialidades perpetradas, que o filme constituía uma vigorosa e claríssima denúncia desses crimes e que, em consequência, ilustrava com rude clareza até que ponto pode ir a brutalidade a que as classes dominantes recorrem quando sentem em perigo a sua hegemonia. Entenda-se e sublinhe-se que nem de longe se tenta nestas colunas sugerir que os muitos milhares embolsados por Ricciardi numa empresa de facto já falida e em país percorrido pela fome constituem uma brutalidade minimamente equiparável à dos infames militares argentinos liderados pelo sinistro general Videla: essa eventual equalização seria absurda e idiota, um desvario cometido em completa e óbvia transgressão do mais elementar bom-senso. Mas é um facto que a brutalidade tem diversos graus e formas, que pode ser ligeira, venial, ou ter um peso insuportável e indignante. Aqui apenas se regista que naquele início de serão dominical o CMTV se aplicou, decerto sem quase dar por isso, a abordar brutalidades de calibre e gravidade muitíssimo diverso. Em ambos os casos com proveito para o esclarecimento dos cidadãos telespectadores, que em verdade é o mais desejável objectivo desta coisa muito transviada do seu melhor destino que é a televisão.