Coisas da impunidade
Os telespectadores portugueses vêm assistindo desde há muito tempo aos modos desabridos, enervados e porventura um poucochinho enervantes, da drª. Paula Teixeira da Cruz. Os de melhor memória recordarão ainda os debates que, na TVI, a futura ministra mantinha semanalmente com Miguel Sousa Tavares. Já então a estimada senhora fazia prova pública de um feitiozinho que, adicionado a um acentuado pendor para a assertividade sem freio, digamos assim, a tornava difícil de suportar. Como por essa altura pouco ou nada se sabia da sua biografia, ninguém tinha o atrevimento de imputar esse pendor à parcela de sangue germânico que lhe corre nas veias, o que aliás decerto seria injusto: dela apenas se sabia que era advogada, o que não é defeito, e que era loura, que também não o é. Mal sabíamos nós o que nos estava reservado. É que, passados alguns poucos anos, o dr. Passos Coelho se lembrou dela para lhe confiar a pasta da Justiça, decerto que por fortes motivações: talvez rendido à capacidade de verbalização da drª. Paula, talvez por lhe ter reconhecido um enorme ímpeto para «fazer obra», talvez por achar que uma loira ficaria lindamente no seu governo. O certo é que o desastre, perdão!, o facto se consumou. E, de então para cá, tivemos com certa regularidade a drª. Paula nos ecrãs dos nossos televisores a explicar-nos como são ou não são as coisas, como deverão ser, em que se tornarão sob o seu robusto impulso. Como é sabido, o vigor que vem animando a senhora ministra concretizou-se mais espectacularmente em dois aspectos fundamentais: a efectiva recusa a milhares de cidadãos de uma Justiça suficientemente próxima para que lhes seja acessível e a introdução de um sistema informático em vários sentidos custoso, talvez como uma joia fabulosamente cara.
A pergunta inevitável
Ora, aconteceu que não há muito tempo, a propósito talvez nem ninguém já se lembre de quê, os telespectadores viram e ouviram a drª. Paula Teixeira da Cruz anunciar em voz tendencialmente trovejante o fim da impunidade. Textualmente: «- A impunidade acabou!», proclamou ela. Não se sabe se uma compacta onda de regozijo percorreu o País ou se alguns narizes se torceram em ar de dúvida, pois não parece fácil extinguir uma tradição de séculos, mas de qualquer modo raros terão sido os que não tomaram como certo que a anunciada extinção haveria de ser aplicada, no mínimo, aos casos em que a senhora ministra tivesse maior capacidade de intervenção. Seria, afinal, a aplicação da velha regra segundo a qual cada um faz o que pode, o que já não seria nada mau. Sobre essa importante comunicação decorreu algum tempo, não muito, numerosos tribunais foram convertidos em caixas de correio, muitos cidadãos se aperceberam de que a Justiça a que constitucionalmente têm direito se lhes tornara praticamente inacessível, que uma espécie de sismo sacudira o território da Justiça português tanto e de tal modo que o tornara caótico e intransitável. Já de vários lados se ouviam indignados clamores de protesto quando a senhora ministra decidiu tomar uma atitude: surgiu na televisão e, zás!, pediu desculpa. Mais: afirmou expressamente assumir a responsabilidade pelo desastre, o que pareceu lindamente. O que, porém, pareceria bem melhor se essa simpática estória de «assumir a responsabilidade» fosse mais que uma fórmula cheia de coisa nenhuma. O cidadão atento ouviu a senhora ministra, gostou do que ouviu e, naturalmente, ficou-se a perguntar «-…e depois?». O que é como quem diz: «- Escapar às consequências do disparate, do prejuízo nacional, é assim tão fácil, basta evadir-se por uma linha de fuga apenas verbal e continuar num lugar que comprovadamente não se mereceu?». Ou de outro modo: «- A coragem pode consistir apenas no paleio?» A questão é que, tanto quanto a realidade responde, parece que sim, presumindo-se até que esta modalidade de farsa corresponde ao «regular funcionamento das instituições» no entendimento de quem bem sabemos. E desta peculiar comédia emerge uma pergunta, inevitável: o fim da tal impunidade, que é feito dele?