A velha arma

Correia da Fonseca

Dia após dia, a televisão tem vindo a falar-nos da Ucrânia.

Os telespectadores olham, ouvem, e se se contam entre os que tiveram a sabedoria ou a sorte de, ao longo do tempo, terem acedido a informações/formações que lhes permitiram decifrar o mundo em que vivem, apercebem-se de que estão a ser alvo de uma técnica antiga, velha como o mundo ou como as gentes, que consiste na utilização da inverdade e na falsificação dos factos usadas como arma de guerra quente ou fria, como método adoptado para a obtenção de vantagens injustas e eventualmente criminosas que não seriam atingíveis com o uso das verdade. Já o velho La Fontaine o ensinou nuns versos que, na tradução portuguesa que muitos de nós encontraram num livro escolar, nos ficaram na memória: «É assim que os maus procedem / Desde as mais velhas idades:/ Com razões que inventam escondem / Seus crimes, suas maldades.»

A televisão, e é claro que não apenas ela, está cheia disso. É a propaganda mascarada de informação, o condicionamento das massas ou, numa designação mais tosca, a lavagem dos cérebros tanto mais eficaz quanto os cérebros não dêem por ela. Por isso, no que diz respeito à televisão, acontece que a informação falsificada não se limita a estar nos momentos assumidamente informativos, que por o serem podem ser objecto de mais atento escrutínio, mas alarga-se para programas de diversão ou até de características culturais, alojando-se neles, impregnando-os, desse modo conferindo à impostura uma aparência de verdade já indiscutível e por isso indiscutida.

A força de um dever

No meio deste processo, há uns sujeitos que se dão ao trabalho de identificarem as falsificações e de virem depois à praça pública, ou ao que parece sê-lo, com o objectivo de denunciarem as aldrabices e os aldrabões, tentando injectar na chamada opinião pública uma visão objectiva e adequada dos factos ou, no mínimo, sugerir esse caminho que não apenas será saudável à escala individual mas também necessário à dimensão colectiva. Desses indivíduos, já os houve mais, é certo, mas ainda restam alguns. E esses alguns suscitam por vezes alguma estranheza: é quase desconcertante que uns indivíduos decidam aplicar horas do seu tempo, para todos sempre escasso, na observação dos meios de manipulação social sempre dominantemente medíocres, porque a mediocridade dominante também faz parte da estratégia da mentira, torna-a indolor e, mais que isso, indetectável. Porém, de tudo isto, que aliás ainda não é tudo, pode emergir alguma utilidade importante, há os que acreditam nisso. E há ainda um outro ângulo a que talvez não tenhamos de ficar indiferentes: é que isto de apontar a mentira e de desmascará-la quanto se saiba fazê-lo, de tentar criar ilhéus de lucidez no mar oceano das mentiras, é, muito mais que um passatempo, um dever. E o cumprimento de um dever situa-se acima da contabilização estreitinha da maior ou menor eficácia. Tentemos lembrar Rostand, já que lembrámos La Fontaine: «- C’est inutile?/ C’est bien plus beaux lorsque c’est inutile!». Parece uma frase bonita.




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