A desonra inútil
Dia após dia, dose após dose, os diversos meios ditos de informação vão aplicando aos seus súbditos o que entendem ser preciso para a formatação do consumidor-robot, o que vê o mundo e o decifra de acordo com o que aos donos dos tais meios convém e agrada. Segundo o rodar dos tempos e dos acontecimentos, os alvos no topo dessa prática vão mudando: ontem ou anteontem terão sido a China e Cuba, hoje serão sobretudo a Venezuela e os que na Ucrânia resistem à anexação económica e militar pelo tandem EU-UE. Isto sem prejuízo da perenidade dos alvos finais: todos os que em quaisquer frentes resistem à permanente agressão do capitalismo, quer sob a forma de guerras imperialistas quer apenas pelas supostamente pacíficas formas de exploração económica que geram as fomes, a doença e outras florações típicas do processo. Ora, parece inútil dizer que essa permanente tarefa de falsificação da realidade transmitida por via mediática não apenas está longe de ser consequência de ignorâncias ou miopias na análise como é uma actividade bem remunerada, pelo menos ao nível superior das hierarquias que se disponibilizam para perpetrá-la. Trata-se, pois, pelo menos num elevado número de casos, de transações de compra e venda aliás perfeitamente típicas da economia de mercado: vende-se ou promove-se a venda da honradez profissional, cobra-se a compensação devida em função das cotações vigentes no tempo em que o negócio ocorreu. Tudo em harmonia com as regras. Infames mas dominantes.
Inutilizar o negócio
É assim, pois, que dia após dia os cidadãos comuns e desavisados ficam a saber, por exemplo, que a Venezuela do chavismo é um lugar horrível onde os estudantes, coitados, aparentemente mais atraídos pela liberdade «made in USA» que pelas sabedorias disponibilizadas pelos livros de estudo, todos os dias são presos e espancados. Há mesmo uma leve inflexão recente que tende a sugerir que no tempo do presidente Chávez as coisas ainda eram suportáveis, mas que com Maduro não há nada a fazer: é mesmo preciso derrubá-lo, e inevitavelmente pela força, pois o chavismo tem o desagradável hábito de vencer sucessivas eleições mesmo que internacionalmente vigiadas e comprovadamente livres. Quanto à Ucrânia, os consumidores da informação euro-americana, é claro que bestialmente livre e acima de qualquer suspeita, ficaram a saber que a ocupação de praças públicas complementada com a destruição de equipamentos sociais, vandalização de edifícios e assassínios diversos é uma forma perfeitamente democrática de aceder ao poder, escorraçar um presidente saído de eleições e optar, enfim, pela liberdade. Contudo, quem tenha esgravatado os factos mesmo só um pouco desembocará num outro desenho da realidade. Saberá que o chavismo de Hugo e agora de Maduro libertou o povo venezuelano de uma longa história de miséria e sujeição, que por isso mesmo nem à custa de maciços subornos e de manobras secretas o antichavismo conseguiu ganhar eleições. Quanto à chamada crise da Ucrânia, não é preciso pesquisar e reflectir muito para descobrir o essencial: trata-se de conseguir que a Ucrânia seja objecto de anexação económica e estratégica por parte da União Europeia, operação a pagar não só com muitas vidas ucranianas mas também com uns bons milhões de euros que a União já decidiu aplicar ali, tudo para conseguir o avanço do capitalismo EU/UE para Leste e um tendencial bloqueio da saída da Rússia para as águas do Mar Negro e do Mediterrâneo. Nada disto é difícil ou misterioso, basta querer saber: como escreveu Sophia e Fanhais cantou, «vemos, ouvimos e lemos,/não podemos ignorar». Com uma condição decisiva: é preciso saber o que se lê e o que ouve, quem o escreveu e sobretudo quem mandou que se escrevesse. Ou dizendo-o de outro modo: quem, no espinhoso mercado dos media, pagou a compra-e-venda da honradez mediática para que fôssemos enganados. E, complementarmente, saber também que quando, avisados do embuste, tomamos as precauções adequadas, tornamos inútil a desonra. O que é de boa moralidade e nos sabe muito bem.