“D” de demora

Correia da Fonseca

Por estes dias, o grande assunto de todos os canais da televisão portuguesa foi, e decerto continuará a ser por algum tempo, o Mundial de futebol e a expedição lusitana aos contestados estádios brasileiros. Porém, esta hegemonia temática foi interrompida em certa medida no passado dia 6, quando das comemorações do 70.º Aniversário do desembarque na Normandia das forças aliadas. RTP, TVI e SIC assinalaram a data e transmitiram imagens da cerimónia havida em França, como bem se justificava. Os telespectadores porventura interessados numa cobertura mais extensa dessa celebração e com acesso a canais internacionais distribuídos por cabo puderam acompanhar reportagens como a do Euronews, quase exaustivas mas não excessivas, pois não apenas o acontecimento evocado o merecia como a presença na Normandia de diversos chefes de estado de muitos países, aliados há setenta anos e hoje nem tanto, justificava curiosidades. Aconteceu mesmo que a senhora Merkel, dirigente suprema do que a muitos parece ser o IV Reich, não desdenhou associar-se às cerimónias que marcavam e festejavam a derrota dos compatriotas que naquelas praias haviam tentado defender o III Reich. Mas esse seu gesto, sem dúvida de paz e confirmador de reconciliações aliás já adquiridas, não foi o único com actual significado político e promissor de pacificações: presenças e encontros protagonizados por Putin e Obama, entre o mesmo Putin e o ucraniano Poroshenko, mesmo sem serem especialmente prometedores foram, sem dúvida, sinais de paz. O que é bonito de ver, ainda que nem sempre sejam bonitos de lembrar e entender os seus antecedentes.

A inutilidade segundo Churchill

O que não foi nada bonito foi ouvir, repetida e presente em todas ou quase todas as reportagens da cerimónia havida, bem como até nas notícias mais ou menos apressadas que evocavam o desembarque, a informação de que o «Dia D» marcara há setenta anos, isto é, em 1944, a decisiva viragem na sorte da Segunda Guerra Mundial. É uma enorme impostura. O que os factos históricos provam sem margem para qualquer dúvida é que a derrota da Alemanha nazi e, por consequência, o desfecho do conflito, foi decidido no solo da União Soviética e bem antes de Junho de 44. Começou a acontecer quando a «blitzkrieg» falhou e o exército alemão foi repelido das proximidades de Moscovo ainda em 41, quando o mesmo exército não conseguiu apoderar-se de Leninegrado depois de um longuíssimo cerco, quando em 43 o marechal Von Paulus perdeu a Batalha de Estalinegrado e acabou por render-se com os restos do seu exército, quando a maior força dos famosos blindados nazis foi dizimada na Batalha de Kursk em Julho/Agosto de 43. Depois disto, a guerra estava perdida para Hitler e Neruda podia escrever: «Este es el dia entre la noche y la alba». Mas o celebrado Dia D ainda vinha longe, e não por acaso: porque a estratégia política das potências ocidentais recomendava que se «desse tempo» a que o exército de Hitler destruísse a União Soviética e assim livrasse o capitalismo do pesadelo da «ameaça comunista». Depois de Junho de 41, data da invasão nazi, e sobretudo após a entrada dos Estados Unidos no conflito, a URSS instava no sentido da criação de uma chamada «segunda frente» que em França contribuísse para aliviar a terrível pressão alemã na «frente russa». Mas a Grã-Bretanha e os Estados Unidos não tinham pressa, o espectáculo dos massacres de populações soviéticas e da destruição do estado comunista não lhes era desagradável. Mais tarde, Churchill chegaria a referir-se à guerra contra a Alemanha como tendo sido «a guerra inútil» porque o grande inimigo seria o comunismo soviético. E a abertura da «segunda frente» foi demorando enquanto os soviéticos morriam aos milhões. Como suposta alternativa, a frente desde há muito existente no Norte de África foi avançada até à Sicília, primeiro, e depois à Itália continental. Mas a de facto urgente «segunda frente», que teria de ser outra coisa, demorava, demorava. Pelo que talvez o D do «Dia D» mereça ser lido como o D de «demora». Nesse dia enfim terminada.




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