Engano em tempo de crise

Correia da Fonseca

A anunciada emissão de «Prós e Contras» trazia um título obviamente inspirado num dos mais famosos romances de Gabriel Garcia Marquez, o que aliás bem podia ser entendido como sendo de inteligente bom gosto, pois a substituição da palavra «cólera» pela palavra «crise» sugeria uma justificada sinonímia que em ambos os casos tinha a ver com abalo social, infelicidades, desgraça. Assim, quem dava de caras com o título do programa era levado naturalmente a pensar que nele seriam abordadas as consequências nas diferentes formas do amor português, tão cantado e mitificado ao longo de séculos, da crise provocada pelos que intervêm na gestão de um país com desamor total pela grande maioria dos seus concidadãos. Ao longo do programa, porém, os telespectadores puderam ir percebendo que a sua expectativa se revelava um engano: a crise, esta crise que dilacera milhões de vidas portuguesas e vai destruindo um país, não surgia nas palavras dos convidados que iam intervindo quer no palco quer na plateia do auditório da Fundação Champalimaud, onde desta vez o «Prós e Contras» assentara arraiais. Todos simpáticos embora talvez uns mais que outros, todos inteligentes, todos cordatos, pelo que a emissão decorreu sem polémicas mais ou menos agrestes que aliás o próprio título permanente do programa obviamente permite prever. Dir-se-ia que até a infatigável Fátima Campos Ferreira pareceu vir mais «sexy» do que é costume, se é que a estas colunas é permitida uma observação nesta matéria.

O efeito corrosivo

Porém, a nenhuma acidez de quanto ali se disse terá suscitado nos telespectadores algum desapontamento: é que uma boa parte deles, se não a sua quase totalidade, poderão ter-se sentido enganados. Ao saberem que o título da emissão era «Amor em tempo de crise», terão previsto que iriam assistir à abordagem dos efeitos da crise financeira, económica, social, que fizeram desabar sobre o povo português, nas diferentes formas de amor que estão presentes no quotidiano de qualquer de nós. Seria o amor pela companheira ou o companheiro, decerto, mas também o amor pelos filhos, pelos pais, até pelos amigos mais próximos, e então viriam à conversa situações que estão na tristíssima actualidade portuguesa: o desespero dos pais perante os filhos a quem deixaram de poder dar todos os necessários cuidados em matéria de alimentação e outros, a desolação dos que se vêem impedidos de ajudar os pais velhos e carenciados, a angústia dos que vêem aproximar-se o dia em que terão de abandonar as casas onde durante anos teceram uma existência familiar de amor e esperança.
Eram, pois, estes ou outros similares os temas que o título «Amor em tempo de crise» parecia prometer introduzir, mas a realidade do programa foi desmentindo a expectativa, revelando o engano. Falou-se de amor, sim, mas exclusivamente do amor bilateral entre criaturas dos dois sexos (ou não), foram mesmo abordados de passagem alguns apontamentos sobre o erotismo e as suas práticas, mas da crise que dia após dia vem destruindo quase todos para proveito de uns poucos nada se disse. De onde a sensação de ludíbrio que terá assaltado boa parte dos telespectadores: não havia sido para ouvir aquilo, nem mesmo para se enternecerem um pouco com o longo percurso afectivo do simpático casal Cardoso, presente na plateia, que tinham sintonizado a RTP1; tinham esperado a denúncia do efeito corrosivo que a pobreza tem sobre a estabilidade do amor conjugal ou mesmo do amor específico do ambiente familiar, da amargura infiltrada até nos gestos que teriam nascido para serem de amor e se transmutam em desespero. É que a miséria ou mesmo apenas a ameaça dela envenenam tudo, e parecia natural que o «Prós e Contras», sempre surgindo como atento às grandes questões, quisesse interessar-se por esse efeito como o título anunciado parecia prometer. Afinal, não, não era nada disso. Era apenas o «Prós e Contras» a fazer uma tácita homenagem a Gabriel Garcia Marquez, graciosa mas semeando um equívoco. Sendo duvidoso que a matéria verdadeiramente importante e desta vez ausente venha a ser tratada numa próxima vez.




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