A nova viagem de um globetrotter

Correia da Fonseca

Liguei o televisor, sintonizei o canal que tenho por dominante e, inesperadamente para mim, lá estava ele. Confesso aliás que nos primeiros segundos mal o reconheci. É que, decerto por ser um profissional dos pés à cabeça, ele estava mais uma vez em uniforme de campanha, digamos assim, e o uniforme visava agora a defesa contra o frio, ao passo que a minha memória ainda guardava a sua imagem encadernada em uniforme contra o calor dos desertos ou dos seus arredores. Acresce que não esperava a sua presença ali, a tantos milhares de quilómetros do estúdio que de certo modo está à sua guarda, pois parecia-me suposto que para o trabalho a fazer seria bastante a presença do habitual correspondente da estação naquela área do mundo, homem que de resto já víramos por ali, naquelas mesmas paragens, a fazer o que é seu costume, isto é, a arrasar a Rússia que aparentemente continua a seus olhos a ser soviética e, portanto, madura para a detracção e o consequente extermínio. Mas não, apercebi-me então que o chefe substituíra o subalterno, que aquele era bem o seu rosto envolvido em espessas lãs e aparentes peles, que nem seria necessário para completa identificação que no final do seu recado me enviasse a piscadela de olho que em dada altura se tornou como que uma assinatura televisual um pouco cúmplice, um pouco pateta. Mais: julguei também entender que a presença do chefe em tão longes terras significaria que haveria por lá tarefas que um mero subalterno não seria capaz de executar, pois o eventual gosto pelas viagens e o objectivo de acrescentar currículo não poderiam explicar tudo e justificar despesas em tempo de penúria financeira.

Nem sequer vestígios

Apliquei-me então a tentar entender, ou porventura adivinhar, que motivos jornalísticos teriam imposto a viagem. Nos relatos, sempre inevitavelmente breves e sumários, de outros jornalistas portugueses deslocados para a região, eu notara omissões que me tinham parecido graves. Ninguém pusera qualquer objecção à democraticidade de uma radical mudança de governo obtida graças a fogueiras, destruição de estruturas urbanas e sobretudo do uso de armas automáticas obtidas sabe-deus-como. Ninguém estranhara a presença de autoridades religiosas adequadamente paramentadas nas fileiras de um dos campos que se opunham, e sobretudo a exibição em trincheiras de efectiva guerra do símbolo de paz e fraternidade que há-de ser a cruz dos cristãos, sejam eles ortodoxos ou de obediência a Roma. Ninguém investigara minimamente a presença, porventura liderante, de figuras reconhecidamente neonazis nas fileiras dos democratas. Ninguém sequer sugerira que uma boa parte daqueles heróicos combatentes pela democracia seriam muito menos movidos pelo apego aos «direitos do homem» que pela apetência de acesso aos consumos de modelo «ocidental», supostamente fartos e fáceis. Ninguém dera sinais de ter ouvido falar dos milhões de dólares investidos pelo tandem EUA-EU para financiamento da libertação da Ucrânia, isto é, do cerco da Rússia, essa competidora cuja população dá crescentes sinais de manter saudades inconvenientes. Ora, compreender-se-á que perante todas estas omissões, mais as que aqui não ficam arroladas, eu tenha sido conduzido à conclusão de que ele, o chefe, o primeiro, provavelmente o melhor, tenha viajado para as completar, isto é, para que o conjunto de informações prestadas pela estação acerca do caso ucraniano excedesse o nível de um exercício de tosca propaganda política aparentemente a soldo de uma das partes. Infelizmente, porém, não aconteceu nada disso e a minha espectativa ficou inteiramente frustrada. Ele, o chefe, o detentor de um notável currículo profissional, não mostrou sequer vestígios de ter ouvido falar de extrema-direita, de nazis velhos ou novos, de acções anticomunistas e discursos anti-semitas característicos dos bons velhos tempos. Como se fosse totalmente incompetente ou quisesse sê-lo. Nem sequer nos piscou o olho. De tudo, poderá ficar uma porventura gorducha nota de despesas de deslocação. E umas linhas acrescentadas a um currículo. É pouco.




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