A quase apaixonada cobertura televisiva dispensada à entronização de Pedro Passos Coelho, tratado como uma espécie de herói e mártir no Coliseu dos Recreios, lugar aliás muito adequado para o evento dadas as suas conhecidas tradições circenses, a televisão não descuidou a tarefa de nos ir dando as informações mais convenientes acerca da libertação da Ucrânia do jugo russo que, como bem se sabe ou se adivinha, ainda liberta ou libertava odores evocativos do passado jugo soviético. Deste modo, os telespectadores tiveram a sorte de ouvir os testemunhos de diversos enviados mais ou menos especiais, entre os quais o inevitável e muito característico Mouravitch, bem conhecido por diversos momentos anteriores da sua carreira, e ficaram também a saber que para Kiev se deslocaram diversas figuras relevantes da União Europeia com o objectivo de arrancar a Ucrânia das garras de Putin, esse sujeito que por mais que faça não consegue ser amnistiado do facto de ter integrado os quadros do funcionalismo soviético. Assim, bem se pode dizer que para Kiev convergiram UE, e por detrás dela os EU, «rapidamente e em força», como se diria usando a histórica fórmula usada em tempos pelo inesquecível e cada vez mais presente entre nós doutor Salazar. Tanto quanto se pode saber pelas notícias mais recentes no momento em que estas linhas são escritas, a vitória do Ocidente está concluída, ficando agora a Ucrânia a cargo das democracias que impulsionaram e pagaram a sua inversão política e doravante terão de sustentá-la, o que decerto farão com o maior gosto.
Nazis de armas na mão
Entretanto, as mais diversas operadoras de televisão tiveram em abundância aquilo de que mais gostam: imagens de violência e morte, de uma praça atafulhada de barricadas e de incêndios localizados, de pormenores tocantes ou como tal avaliados. Entre estes, lembro grandes planos de uma cruz erguida como emblema e decerto estímulo numa das barricadas insurrectas, implícita afirmação de que também a desvelada supervisão divina tomara partido e estava ali, a enfrentar a polícia e empenhada no derrube do governo Ianukovich, então ainda reconhecido pela comunidade internacional. Foi, sem dúvida, uma imagem interessante e significativa, mas a informação mais interessante de todas as que integraram o quadro do que talvez possa ser designado como «o Caso Ucraniano» foi a de que nas fileiras dos que disparavam em favor da opção pelo Ocidente estavam grupos de extrema-direita, tão evidentes como tal que por mais de uma vez os jornalistas os identificaram como neonazis. Foi um facto novo no quadro actual, mas não motivo para grande espanto: sempre a extrema-direita em geral e o nazismo em especial floresceram na Ucrânia talvez como uma espécie de vocação, tanto e de tal modo que até Hitler pôde ali organizar, com ucranianos, unidades militares nazis que ajudaram a invasão hitleriana de 1941, o que é bom não esquecer para eventual auxílio ao entendimento do que se passou agora e porventura continuará a passar. É que a questão pode não estar encerrada e que o óbvio fascínio pelo Ocidente e pelos seus valores, o mais persuasivo dos quais será a miragem do acesso ao consumo abundante e fácil, ainda não mobiliza a totalidade dos ucranianos. Decerto por azar, os jornalistas ocidentais que voaram para Kiev não encontraram nenhum ucraniano que olhasse o Ocidente com suspeição e preferisse a manutenção dos laços históricos com a Rússia, mas o certo é que esses ucranianos existem. Por outro lado, parece improvável que a Rússia aceda facilmente a que seja eliminada a sua secular hegemonia no Mar Negro com saída para o Mediterrâneo pelos Dardanelos, acontecendo que no Mediterrâneo e nas proximidades da Síria já há muito navega o poder naval norte-americano. Em resumo: as coisas estão ainda complicadas. Mas, a julgar pelas imagens que a televisão nos facultou, Iulia Timochenko, apesar de doente, saiu da prisão com bom aspecto e mais gordinha. Foi decerto por isso que o dr. Durão Barroso se congratulou. E nós com ele, naturalmente.