A TV na ofensiva

Correia da Fonseca

Não há que enganar e nem sequer é fácil conseguir ser enganado mesmo que ao abrigo de uma grande ignorância acerca do que se passa no mundo: a União Europeia, esse cada vez mais óbvio império alemão a agir sob pseudónimo, decidiu lançar-se à conquista da Ucrânia, histórico ponto frágil da hegemonia russa para lá dos Cárpatos. Sabemo-lo sobretudo graças à televisão, mãe de todos os nossos saberes e também, talvez sobretudo, dos nossos enganos. E, como aliás é de regra, a televisão ensina-nos também quais são os bons e quais são os maus: os primeiros são os que anseiam pela integração da Ucrânia na EU, os segundos são os que preferem manter o país na órbita da Rússia na sequência de uma espécie de força centrípeta velha de séculos que sempre suscitou tendências e aspirações opostas. Nos velhos e terríveis tempos do nazismo, o senhor Hitler chegou a utilizar as peculiaridades anti-russas da Ucrânia para ali constituir unidades militares integradas nas forças nazis, e então foi ver ucranianos com a farda e decerto também com o espírito das SS até que o destino desabou sobre as suas cabeças e acabaram mal. Agora, tempos outros, são outros os meios e as estratégias, trata-se não de utilizar a força bruta mas de suscitar a cobiça burra. Como em casos anteriores, alguns de dimensão ainda maior, o método consiste em injectar nas populações, graças aos diversos meios de infecção mental em que os media ocidentais se tornaram mestres, a convicção de que a anexação da Ucrânia pela União Europeia resultará no fácil acesso dos ucranianos aos melhores e mais copiosos consumos, miragem que convenientemente se abriga sob o eufemismo de «acesso à democracia». Como se o actual presidente da Ucrânia não tivesse resultado das opções dos cidadãos expressas mediante o voto livre e supervisionado; como se o paradigma da luta pela democracia fosse a prática das violências urbanas de vária ordem que a televisão nos tem mostrado, sempre temperando o mau aspecto daquelas práticas democratizantes com o argumento implícito ou explícito de que se trata de luta pela independência.

Arma de guerra

Porque nada nos obriga a sermos ingénuos, bem podemos suspeitar de que os consumos abundantes que os contestatários ucranianos vislumbram na linha do horizonte já chegaram a mãos selecionadas sob a forma de dinheiros adequados ao estímulo das vontades e à obtenção dos meios. Para além dessa possível percepção, porém, há o facto que a TV não oculta: a escandalosa ingerência da EU nos problemas internos da Ucrânia mediante movimentações ditas diplomáticas. Figuras qualificadas do Ocidente europeu, eurodeputados mas não só, viajam para Kiev, encontram-se com os que não será demais chamar de insurrectos, dão-lhes apoio e ânimo às claras, talvez cheques na penumbra. Por outras palavras: propõem-se comprar a Ucrânia, embora com pagamento a prazo, sendo por agora o adiantamento feito com ilusões. E a operação de compra foi tão óbvia que Vladimir Putin resolveu responder na mesma moeda e entrar no leilão. Na verdade, pelo menos em tempos recentes nunca se vira que um país fosse posto à venda de forma tão descarada, mas pelos vistos os ucranianos não se importam com isso, muito menos a televisão. Sem que isso deva espantar: a TV afirmou-se há muito como arma de guerra, de guerra ideológica nos tempos pacíficos, de apoio a armas mais rudes quando os conflitos aquecem e o sangue escorre, como na Síria. No caso da Ucrânia, a televisão portuguesa até manda enviados especiais, mas dir-se-ia que os coitados têm a maior dificuldade em descobrir e conversar seriamente com os que apoiam o que pode designar-se por «opção russa», isto é, o lanço com que Putin tentou cobrir a tentação da suposta abundância ocidental no leilão em curso, e não reconhecem a instalação do caos na cidade de Kiev como forma aceitável de reivindicar a democracia. Compreende-se: é que a televisão está como «força especial» na ofensiva para a anexação económica e política da Ucrânia, para a intensificação do cerco à Rússia. Parecendo não se dar conta de que está a participar numa brincadeira com o fogo.




Mais artigos de: Argumentos

Fome, opulência<br> e imperialismo nos países pobres

«Os métodos de instalação do caos económico e político no mundo não acontecem por acaso. A forma como têm sido meticulosamente premeditados por grupos financeiros internacionais tem sido imposta por núcleos apátridas que se escondem por detrás das...

As portas que Ary abriu

Escrevo a a 18 de Janeiro de 2014, dia em que faz 30 anos que morreu José Carlos Ary dos Santos. Escrevo dolorido. Escrevo admirando. Escrevo agradecido. O Zé Carlos foi o que toda a gente diz que foi e eu digo que foi tudo isso e o que ainda é. O Zé Carlos foi o “poeta do...

Raciocínios diferentes

Ao assistirmos às entrevistas nos grandes media percebemos que frequentemente o entrevistado e o entrevistador utilizam o mesmo idioma e o mesmo tema em debate mas raciocinam como se o pensamento de ambos não correspondesse a uma mesma perceção da realidade. O Governo de Portugal, e o seu...