Almeida Garrett

A viagem de Lisboa a Santarém feita há 170 anos (conclusão)

Anselmo Dias

Regressemos a 1843, altura em que em Portugal ainda não havia comboios nem tão pouco uma estrada que ligasse Lisboa ao Porto.

Estamos numa altura em que havia um pequeno número de máquinas a vapor e onde a produção – a pequena produção manufactureira – era alimentada sobretudo com a força física dos homens e dos animais domésticos, a par da energia eólica que movia os moinhos e da energia hidráulica que movia as azenhas, o que indicia uma indústria meramente residual.

Seriam necessários 93 anos após a 1.ª edição de «Viagens na Minha Terra» para que uma nova escola literária, o neo-realismo, viesse, sobretudo a partir do romance «Gaibéus», colocar a questão da pobreza não no plano da exigência moral mas no âmbito de «um

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A população portuguesa não chegava aos 3 500 000 residentes dos quais apenas uma pequena parte – na ordem dos 11, 12% –, vivia em cidades.

A viagem de Almeida Garrett (AG) de Lisboa a Santarém integra o diagnóstico atrás referido, a que se junta os aspectos sociais e políticos decorrentes da ascensão da burguesia na governação do país, da clivagem entre as várias formações liberais, tudo isto precedido, entre 1834 e 1836, por uma grande transferência de propriedade, mercê da venda de 510 conventos e respectivas terras que haviam pertencido às ordens religiosas a uma minoria de 623 burgueses e barões endinheirados.

Foi um fartar vilanagem nesta transferência de propriedade, possibilitando a uma pequena minoria um rápido enriquecimento, tema que AG refere no contexto das suas consequências quer para os frades – os antigos proprietários –, quer para os «barões», os novos-ricos.

A viagem faz-se, na parte inicial, por barco, passando por Alhandra, Vila Franca, Almeirim e terminando em Vila-Nova-da-Rainha.

Ao passar por Vila Franca, AG não deixa de recordar que foi aí que D. Miguel iniciou o movimento para liquidar o processo iniciado com a Revolução de 1820 e, assim, obrigar Portugal a regredir à monarquia absoluta, uma espécie de antecipação temporal das medidas de Passos Coelho na regressão social fascizante no início da segunda década do século XXI.

A este propósito recorda: «Mas eu não tenho ódio nenhum a Vila Franca, nem a esse famoso círio (uma alusão a D. Miguel) que lá foi fazer a velha monarquia».

Passa por Azambuja e Cartaxo onde, aqui, recorda que foi na charneca entre esta vila e Santarém que D. Pedro fez «...a sua última revista ao exército liberal. Foi depois da batalha de Almoster, uma das mais lidadas e das mais ensanguentadas daquela triste guerra. Toda a guerra civil é triste. E é difícil dizer para quem é mais triste, se para o vencedor ou para o vencido».

Na ponte de Asseca recorda as invasões francesas e a sua meninice, referindo:. «Desde pequeno que fui jacobino: já se vê: e de pequeno me custou caro. Levei bons puxões de orelhas de meu pai por comprar na feira de Sã Lázaro, no Porto, em vez das gaitinhas ou dos registos de santos, ou das outras bugigangas que os mais rapazes compravam... não imaginam o quê... um retrato de Bonaparte. Foi «inguiço» – diria uma senhora do meu conhecimento que acredita neles: foi inguiço que ainda se não desfez e que toda a vida me tem perseguido».

Ultrapassada aquela ponte e ultrapassada a parte descritiva da viagem, AG inicia a componente romanesca do livro, começando por olhar para uma casa onde, numa das janelas, ficcionalmente vislumbra «A menina dos rouxinóis, menina com olhos verdes!», ou seja, a Joaninha a heroína da história de amor com o seu primo, o Carlos.

Mas, quem era o Carlos?

Era um jovem oficial do exército liberal, ex-exilado em Inglaterra, que numa das suas deambulações no espaço que separava as duas frentes dos exércitos de D. Pedro e D. Miguel reencontra, após anos de separação, a sua prima Joaninha e com a qual, encontro após encontro, vai reforçando o seu amor, amor de igual forma correspondido por esta. Acontece, porém, que Carlos era casado com Georgina, uma jovem inglesa, estando ligados mutuamente também por um grande amor.

Joaninha vivia no vale de Santarém com a avó, igualmente avó de Carlos, uma senhora idosa e cega.

Avó e neta eram visitadas todas as sextas-feiras por Frei Dinis, o guardião da igreja de São Francisco, sita em Santarém, cidade onde, na parte final da guerra civil, estava instalado o quartel-general das forças de D. Miguel.

Tal visita era naturalmente aceite pela avó mas não totalmente compreensível pela neta. Havia algo de estranho numa relação que ela não compreendia, o mesmo acontecendo a Carlos por aquilo que decorria das conversas com Joaninha.

Entretanto a guerra civil aproxima-se do fim, designadamente após a batalha de Almoster realizada em 18/2/1834 e na qual o exército de D. Miguel perdeu cerca de 1000 apoiantes, entre mortos, feridos e prisioneiros.

No seguimento desta batalha Carlos foi chamado ao seu quartel-general para o prosseguimento do confronto militar, assim relatado por AG:

«Combateu-se larga e encarniçadamente – como entre irmãos que se odeiam de todo o ódio que já foi amor – o mais cruel ódio que tem a natureza!

O dia declinava já aquando num hospital em Santarém entravam muitas macas de feridos, e entre eles um todo crivado de balas e coberto de sangue que, assim pelos restos do uniforme como por certo ar bem conhecido – e característico então, se via claramente ser do exército constitucional».

Esse corpo crivado de balas era o corpo de Carlos que teria entrado no hospital no decurso do controle da cidade de Santarém pelas tropas absolutistas, corpo que, posteriormente, foi transferido para uma arejada e confortável cela do convento de São Francisco onde no dia em que recuperou, perante a figura feminina à sua frente «entreabriu as pálpebras e exclamou em inglês: «Oh Georgina, Georgina, I love you still» – Georgina, Georgina, eu ainda te amo».

Esta Georgina, cidadã inglesa, era nem mais nem menos a já referida mulher de Carlos.

Ao mesmo tempo, no espaço contíguo à cela, «a uma porta interior e que abria para uma espécie de alcova obscura, em pé, os braços cruzados e metidos nas mangas, o capuz na cabeça, estava um frade velho, alto mas curvado do peso dos anos ou dos sofrimentos».

Este frade era, sem que Carlos o soubesse o seu o pai biológico, o tal que todas as sextas-feiras visitava a sua avó e a sua prima.

Este frade, Frei Dinis, inimigo de Carlos do ponto de vista político, foi igualmente o assassino daquele que Carlos julgava ser o seu verdadeiro pai e assassino igualmente do cunhado deste, ou seja, do pai de Joaninha.

A partir desta cena a tragédia vai em crescendo à medida em que todos vão conhecendo as relações familiares, designadamente o amor comum de Carlos à prima e à sua mulher, bem como a paternidade de Carlos e o passado do seu pai biológico. Toda esta tragédia acaba da seguinte forma:

  • Joaninha enlouquece e morre. Georgina, que era protestante, converte-se ao catolicismo e torna-se abadessa de um convento em Inglaterra. Frei Dinis – o assassínio, o reaccionário –, é perdoado pelo filho.

Este, por opção de vida, passou a anti-herói: teria engordado, enriquecido, enveredado pela agiotagem e sido promovido a barão, ou seja, fez o percurso histórico da burguesia liberal.

Acabada esta «estória», ou seja, a parte ficcional do livro, AG passa descrever o seu regresso a Lisboa.

Na última noite que passou no Ribatejo, AG sonhou com o pai e com a avó de Carlos. Com o pai, que era reaccionário, frade e assassino. Com a avó, que era velha e cega.

Mas também, nessa última noite, sonhou «... com uma enorme constelação de barões que luzia num céu de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas, de todas as cores e matizes possíveis, Eram milhões e milhões...

Nunca vi tanto milhão, nem ouvi falar de tanta riqueza senão nas mil e uma noites».

No dia seguinte, refere AG: «Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta...».

AG termina praticamente o seu livro quase da mesma forma com que começou, referindo a pobreza na sociedade portuguesa, embora esse facto seja meramente complementar aos múltiplos temas nele abordados.

Trata-se, porém, de uma posição moral, pois nunca abordou, no contexto das relações sociais, a causa objectiva que cria a pobreza.

Com efeito, criticado mais tarde por ter aceite o título de visconde AG responde «…que nunca professara as hipócritas doutrinas do nivelamento social».

Esta postura ideológica não belisca, de acordo com a opinião de grandes escritores e de especialistas literários, o destacado papel de AG na nossa cultura e a importância na nossa literatura de «As Viagens na Minha Terra» e de «Frei Luís de Sousa.

 

A questão da pobreza no contexto da criação literária

 

Entretanto, em Portugal, outras escolas e tendências literárias foram nascendo e morrendo no decurso dos séculos XIX e XX. Porém, seriam necessários 93 anos após a 1.ª edição de «Viagens na Minha Terra» para que uma nova escola literária, o neo-realismo, viesse, sobretudo a partir do romance «Gaibéus», colocar a questão da pobreza não no plano da exigência moral mas no âmbito de «um mundo novo sem opressores nem oprimidos», onde não haja lugar à exploração do homem pelo homem.

Esse movimento literário envolveu muitos escritores – marxistas e não-marxistas –, cuja criação artística, por vezes desigual, produziu em muitos leitores um duplo efeito: o prazer da leitura associado à elevação da sua consciência de classe.

Por tudo isto, no ano em que se comemora o centenário do nascimento de Álvaro Cunhal, tem todo o cabimento salientar a importância da sua produção literária, com especial destaque para «Até Amanhã, Camaradas», considerado «um dos romances mais representativos do neo-realismo português», escola literária que colocou, simultaneamente, o fim da pobreza e o fim da oligarquia no contexto da luta de classes.

 

Fontes:

  • Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, Livraria Tavares Martins, 1946;

  • A Crise da Consciência Pequeno-Burguesa, de Augusto da Costa Dias, Portugália, 1962;

  • Temas Oitocentistas, Tomo II, de Joel Serrão, Portugália, 1962;

  • História Ilustrada das Grandes Literaturas, António José Saraiva, Estúdios Cor, 1966;

  • A Crise do Liberalismo e as Primeiras Manifestações das Ideias Socialistas em Portugal, Victor de Sá, Seara Nova, 1969;

  • A Revolução de Setembro de 1836, Victor de Sá, Publicações Dom Quixote, 1969;

  • Dicionário de História de Portugal, Iniciativas Editoriais, 1963/1971.