Nascer mendigo

Correia da Fonseca

É pre­ciso re­co­nhecer que, de­pois de algum tempo em que terá ten­tado evitar o que para todos já era óbvio, a te­le­visão por­tu­guesa se rendeu à re­a­li­dade e passou a dar-nos no­tí­cias do que de mais re­le­vante vai acon­te­cendo no nosso País. Não são boas no­tí­cias, é certo, mas a culpa não é dela e, de resto, apa­ren­te­mente para ame­nizar os efeitos da des­graça que de­cidiu já não calar, vem im­pin­gindo-nos em horas de boas au­di­ên­cias al­guns pro­gramas su­pos­ta­mente ale­gres, de facto de­pri­mentes para quem tenha dose normal de bom gosto e hi­giene mental, que pa­recem cor­res­ponder ao que aquela cepa é mais capaz de dar. Pas­semos sobre isso, porém, e re­gis­temos pelo menos uma das no­tí­cias bo­a­zi­nhas que a te­le­visão também traz aos nossos te­le­vi­sores, e esta, por sinal, com uma grande in­sis­tência: a de que, em con­tra­ponto com o ma­re­moto de des­graças e agres­sões que se abateu sobre o povo, re­cru­desce a prá­tica de actos de ca­ri­dade, ditos de so­li­da­ri­e­dade, ca­pazes de so­cor­rerem pon­tu­al­mente al­gumas mi­sé­rias e de, si­mul­ta­ne­a­mente, pro­por­ci­o­narem a muitos dos da­dores o re­con­for­tante sen­ti­mento de serem boas e ge­ne­rosas almas, o que não é pouco. Neste as­pecto, as no­tí­cias acerca dos re­sul­tados da cam­panha do Banco Ali­mentar Contra a Fome são óp­timas: é pro­vável que pelo menos du­rante al­guns dias al­guns por­tu­gueses ca­ren­ci­ados te­nham leite, arroz e massas. Não é tudo, mas é o bas­tante para anes­te­siar al­gumas cons­ci­ên­cias, re­sul­tado que não é de deitar fora. De resto, seria ab­surdo ima­ginar que à en­trada dos su­per­mer­cados po­de­riam ser dis­tri­buídos postos de tra­balho aos de­sem­pre­gados ou tectos aos des­pe­jados: a ca­ri­dade tem li­mites, é ade­quada à dis­tri­buição de re­fei­ções no âm­bito das pós-mo­dernas «sopas dos po­bres», mas não se lhe pode pedir tudo.

Um co­meço de vida

Neste quadro das ac­ti­vi­dades ca­ri­ta­tivas, ao que dizem tão ge­nui­na­mente por­tu­guesas e de­certo tão so­ciais-de­mo­cratas, notei com es­pe­cial en­levo uma no­tícia que se re­feria a um recém-nas­cido creio que para as bandas do Norte. Se bem me lembro, os pais eram po­bres (ou à po­breza ha­viam sido con­du­zidos por de­certo sá­bias me­didas go­ver­na­men­tais), o resto dos pa­rentes pró­ximos go­zaria do mesmo es­ta­tuto, e a cri­ança nem teria aquela meia dúzia de trapos novos e limpos co­mum­mente de­sig­nada por «en­xoval». Foi então que a ca­ri­dade surgiu com su­fi­ci­ente efi­cácia: as ca­rên­cias do bebé foram eli­mi­nadas pela so­li­da­ri­e­dade, em torno da cri­ança ficou te­cida uma at­mos­fera de pro­tecção apenas tran­si­tória, sim, mas com­pro­va­tiva da exis­tência de ex­ce­lentes sen­ti­mentos. Nada foi dito quanto à efi­cácia do mé­todo se e quando am­pliado à to­ta­li­dade das ca­rên­cias, quer quanto aos que acabam de nascer quer quanto aos que estão à beira de morrer, mas ficou ali im­plí­cito que aquele caso con­creto de pe­núria es­tava ar­ru­mado, di­gamos assim. É claro que o que acon­te­cera àquele novo ci­dadão por­tu­guês havia sido que ini­ciara o seu per­curso de vida re­ce­bendo es­molas, isto é, na con­dição de men­digo, ca­rac­te­ri­zação esta que por­ven­tura soará de­sa­gra­da­vel­mente mas que nem por isso deixa de ser ade­quada. O cu­rioso, porém, é que aquele novo men­digo, tão re­cente e novo que es­tava in­tei­ra­mente in­cons­ci­ente da sua con­dição, era na te­le­visão mo­tivo de sa­tis­fação e apa­rente re­con­forto por ter sido prova pú­blica e até en­ter­ne­ce­dora da be­leza in­trín­seca da ca­ri­dade. Antes da­quela breve re­por­tagem poder-se-ia supor que nascer men­digo era uma tris­teza; via-se a re­por­tagem e era pos­sível sentir que nascer men­digo é afinal um acon­te­ci­mento feliz no quadro na­ci­onal. Os exi­gentes podem ter fi­cado a de­sejar que aquela pe­quena re­por­tagem ti­vesse pro­lon­ga­mentos: que de­pois dela a te­le­visão nos vi­esse contar o que será feito não só da­quela cri­ança e dos seus pais, mas também e so­bre­tudo de todos os ou­tros seus iguais na po­breza ao nascer mas não no apoio ca­ri­ta­tivo. Essa seria, sem dú­vida, uma ex­ten­sís­sima re­por­tagem muito triste, muito amarga, muito dura. Mas isto de re­por­ta­gens são como a pró­pria ca­ri­dade: chegam a al­guns, poucos, e por es­casso tempo. E todo o resto, que é o fun­da­mental, fica de fora.




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