Democracia apenas para o «povo dos senhores»?
Domenico Losurdo é um filósofo comunista italiano. O jornal Solidaire, do Partido do Trabalho da Bélgica, entrevistou-o à margem de uma conferência sobre o seu livro, «Contra-História do Liberalismo». Entrevista em vermelho vivo.
«Não há uma evolução espontânea graças à qual o liberalismo tenha superado as cláusulas de exclusão. A sua superação deve-se apenas aos movimentos de protesto»
Foi sua intenção escrever um «Livro Negro do Liberalismo»?
Domenico Losurdo – Não. Algumas pessoas fazem a comparação com o «Livro Negro do Comunismo»,(1) mas esta «Contra-História do Liberalismo» contém uma parte final em que se fala do legado permanente do liberalismo. Se fosse publicada uma nova edição do «Livro Negro» com um parágrafo final sobre o legado permanente do comunismo, então a comparação seria aceitável.
Por que escreveu este livro?
A ideologia dominante tem vários aspectos. Por um lado, descreve uma hagiografia da tradição liberal. Por outro, toda a tradição revolucionária ou é ignorada ou difamada, não apenas o comunismo, mas também as correntes mais radicais da Revolução Francesa, também a grande revolução dos escravos negros em Santo Domingo (hoje Haiti).
Descrevi em vários livros a contribuição fundamental do movimento revolucionário, do movimento comunista, para o advento da democracia no Ocidente. Por outro lado, devia explicar que não foi o liberalismo enquanto tal que produziu a democracia no Ocidente. No final do livro, por exemplo, cito autores americanos que mostram muito claramente que, mesmo depois da II Guerra Mundial, mesmo depois do esmagamento do III Reich, os Estados Unidos continuavam a ser um Estado racista. Por exemplo, em muitos estados dos EUA, havia leis que puniam muito severamente as relações sexuais e o casamento entre brancos e as outras «raças». Este Estado interferia muito duramente inclusive ao nível mais íntimo da vida pessoal.
Descrevo um episódio muito emblemático: em 1952, nos EUA, a discriminação racial nas escolas, meios de transporte, cinemas, etc., continuava a existir. O Tribunal Supremo foi então chamado a pronunciar-se sobre se estas discriminações raciais eram ou não constitucionais. Antes da deliberação, o Tribunal recebeu uma carta do Ministério da Justiça que dizia: «Se decidirem que as normas que regem a discriminação são legítimas no plano constitucional, isso será uma grande vitória para o movimento comunista, para os movimentos dos povos do Terceiro Mundo, no sentido em que podem desacreditar a democracia nos Estados Unidos. Só podemos conquistar legitimidade aos olhos do Terceiro Mundo se decidirmos que as normas da discriminação racial são inconstitucionais». Portanto, o fim ou quase o fim do Estado racial nos Estados Unidos não pode ser compreendido sem o desafio do movimento comunista e do movimento revolucionário dos povos colonizados do Terceiro Mundo. Não há nenhuma endogénese(2), nenhuma evolução espontânea através da qual o liberalismo supere estas cláusulas de exclusão. Pelo contrário, as causas da exclusão foram superadas unicamente graças aos movimentos de protesto.
Afirma que o liberalismo é uma democracia apenas válida para o «povo dos senhores». Quem é este «povo»?
No meu livro evoco o périplo aos Estados Unidos de dois viajantes, Alexis de Tocqueville, grande pensador liberal, e Victor Schoelcher, ministro após a Revolução Francesa de 1848, que decretou a abolição da escravatura nas colónias francesas. Estas duas personalidades viajaram separadamente pelos Estados Unidos na década de 1830. E ambos fazem quase a mesa descrição. Tocqueville descreve a terrível escravatura dos negros e relata que os índios são exterminados. Mas a sua conclusão é de que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo. O destino dos povos colonizados não tem qualquer papel na definição que Tocqueville faz dos Estados Unidos enquanto democracia.
Schoelcher, por sua vez, reconhece que, no que respeita à comunidade branca, existe o Rule of Law [estado de direito], o direito constitucional, a independência da magistratura, a eleição do presidente pelo povo, etc. Porém, toma o destino dos índios e dos negros como a prova de que os Estados Unidos são um dos piores sistemas despóticos que podemos conceber.
Há essa «raça» de senhores, quase todos proprietários de escravos, e é esse sentimento de superioridade infinita que os brancos nutrem em relação aos outros que estabelece relações de respeito no plano do governo, da lei. Esta democracia do «povo de senhores» continua a existir hoje.
Todo o mundo sabe que a propaganda ocidental proclama Israel como a única democracia do Médio Oriente. Não devemos subestimar o facto de que, para os cidadãos israelitas, existe um estado de direito. Mas ninguém ignora que os palestinianos são condenados sem julgamento, sem sequer saberem de que crime são acusados… É uma «democracia para o povo dos senhores».
Alguns investigadores designam-na como «Herrenvolk democracy».(3)
Podemos assim compreender a coisa mais terrível: esta democracia para o povo dos senhores pode transformar-se sem grandes dificuldades em ditadura do povo dos senhores. É o nazismo, o fascismo.
É ainda esse o caso na Europa ou nos Estados Unidos hoje?
Nos Estados Unidos vemos Guantánamo, Abu Grahib ou prisões desse género no Afeganistão. Nestes casos, o estado de direito não vigora. Mas se considerarmos não apenas as relações entre os indivíduos mas também as relações entre os estados, torna-se claro que o imperialismo norte-americano ou europeu não quer reconhecer a igualdade entre os estados. Qual é a ideologia que o Ocidente representa? Alega que «o Conselho de Segurança nos deu autorização para fazer uma guerra». Muito bem. Mas se o Conselho recusar tal autorização, são eles próprios a arrogarem-se o direito de fazer a guerra, por exemplo, na Jugoslávia, no Iraque ou na Síria. No que respeita às relações com o resto do mundo, o Ocidente funciona ainda como uma democracia para o povo dos senhores.
Cito um historiador norte-americano, George Fredrickson, que explica que as discriminações raciais nos Estados Unidos dos anos 30 não se distinguem da atitude do III Reich para com os judeus. No final do século XIX e inícios do século XX, nos Estados Unidos, o linchamento de negros era organizado como um espectáculo de massas. Tratava-se de torturas que duravam várias horas. Os alunos tinham um dia sem aulas para assistirem a este espectáculo.
Fredrickson descreve também como a Herrenvolk Democracy se pode transformar em ditadura para o povo dos senhores. Em meados do século XIX, na Carolina do Sul, a pena de morte não se aplicava apenas ao escravo que fugia, mas também a qualquer pessoa que o tivesse ajudado a fugir. Cada americano era obrigado a tornar-se num caçador de homens, havia uma mobilização a favor da escravatura e reinava uma atmosfera totalitária. Nas condições de uma crise histórica, como a que se verificou nos anos 30, esta democracia pode transformar-se sem dificuldade numa ditadura. Se lermos a história dos estados, vemos a grande validade da tese de Marx e de Engels, segundo a qual «não pode ser livre um povo que oprime outros povos».
E esta lógica mantém-se ainda hoje. Já referi Guantánamo, onde prisioneiros são torturados e considerados como bárbaros. Em geral não são cidadãos dos Estados Unidos. Mas há uma excepção. Todas as terças-feiras, Obama discute com a CIA a «kill-list», a lista das pessoas suspeitas de terrorismo que podem ser abatidas por drones. Nesta lista há cidadãos dos Estados Unidos. Mesmo para os cidadãos norte-americanos, esta democracia para o povo dos senhores pode voltar-se contra eles.
Muitos historiadores rejeitam a noção de universalismo. Você, não. Porquê?
Essa corrente histórica que critica o universalismo enquanto tal é errónea. O capítulo mais terrível da história do colonialismo foi o nazismo. O nazismo é a radicalização da tradição colonial. Basta ler os discursos de Hitler ou os textos de Rosenberg, o ideólogo do III Reich, que fala calorosamente do Estado racial dos Estados Unidos. Diz que é o Estado do futuro. Pergunta-se: o colonialismo foi conduzido pelo universalismo ou pelo anti-universalismo? O nazismo quer reduzir à escravatura ou exterminar os «Untermenschen», os sub-humanos, esses seres que têm a aparência de homens mas que não o são. O nazismo é o maior anti-universalismo. Até destruiu o conceito universal de homem. Existem os homens autênticos, os arianos, e os outros. Rosenberg chega a dizer que o universalismo é uma invenção da raça judaica. Se nos debruçarmos sobre a história do termo Untermensch, vemos que não foram os nazis que o inventaram. Trata-se da tradução de «under man», termo que veio dos Estados Unidos no início do século XX e que definia os negros. Portanto, já nessa altura havia a desconstrução do conceito de homem universal.
Qual foi o movimento que pôs em causa o colonialismo? A Revolução de Outubro. Lénine não lançou só um apelo aos operários para se insurgirem contra o capitalismo, contra o imperialismo. Também lançou um apelo aos escravos das colónias para se revoltarem contra a dominação das ditas raças superiores. A ideologia de Lénine é universalista.
No seu livro identifica duas correntes: o radicalismo e o liberalismo…
O liberalismo é uma categoria muito mais ampla do que o radicalismo. O liberalismo é a defesa do indivíduo contra o poder de Estado. Mas a definição do liberalismo varia ao longo dos períodos. Andrew Fletcher, no século XVII, que se considerava republicano (o que era muito revolucionário, uma vez que todo o mundo era monárquico), criticava o poder absoluto do monarca. O seu discurso é o da liberdade do indivíduo. No entanto, por outro lado, Fletcher é a favor da escravatura, mesmo da escravatura dos vagabundos brancos. Para ele, o indivíduo era só o indivíduo da classe dominante, a classe mais abastada inglesa. Em prol deste indivíduo está disposto a travar uma grande luta contra o poder da monarquia. É a primeira fase do liberalismo.
Para a segunda fase tomemos John Locke, filósofo inglês do século XVII. Excluía a escravatura branca mas, é claro, não a dos negros. Aliás, era accionista da Royal African Company, companhia que se dedicava ao comércio de negros. Neste período, o indivíduo é apenas o indivíduo branco. Os negros não são constituídos de indivíduos, são instrumentos de trabalho.
Depois da Guerra da Secessão e da abolição da escravatura negra, os liberais criticam a escravatura em geral, mas nos Estados Unidos e nas colónias europeias, o estado de direito não vigora para as raças inferiores. O liberalismo é a favor do direito às liberdades individuais, mas isso não é compreendido na sua universalidade. As causas da exclusão variam conforme as épocas e fases do liberalismo, que se adapta às grandes lutas.
Qual é a diferença entre liberalismo e radicalismo? Tomemos Tocqueville. Criticava a escravatura oficial, era um abolicionista, mas nunca teria pensado em encorajar uma revolta de escravos. Não considerava os negros como interlocutores válidos, estes eram apenas os brancos.
Tomemos de seguida Condorcet, filósofo do século XVIII, que escreveu uma carta aberta aos escravos negros. São estes os interlocutores de Condorcet, que vai ainda mais longe. Afirma que «os esclavagistas não consideram os negros como homens. Eu considero homens apenas os negros, não os proprietários de escravos».
Para Condorcet, os amigos da liberdade são os negros e os escravos negros, e não considera os proprietários de escravos como interlocutores. Vê-os como inimigos da liberdade. É isto o radicalismo.
Ao fazer um retrato do liberalismo também menciona uma alternativa
Na última parte, sobre o legado do liberalismo, apelo às correntes anticapitalistas, aos comunistas a não negligenciarem este legado permanente. Os comunistas devem aprender alguma coisa do liberalismo. Noutros livros referi a necessidade da «desmessianização» do programa comunista. Depois da Revolução de Outubro, Ernst Bloch, um grande filósofo alemão, escreveu na primeira edição da sua obra «Espírito da Utopia» que os sovietes transformariam o poder em amor. Trata-se de um messianismo. Acaba-se a contradição. Na segunda edição eliminou essa afirmação. O problema não é a transformação do poder em amor.
A sociedade pós-capitalista não será o amor universal, como pensou Bloch a certa altura. Será uma sociedade onde não haverá contradição antagónica. Temos que pensar numa emancipação radical, mas isso não é o fim da história.
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Entrevista publicada, em 29 de Abril, no site do jornal Solidaire. Tradução do francês da responsabilidade da redacção do Avante! Original em: (http://www.ptb.be/index.php?id=1326&tx_ttnews%5btt_news%5d=34548&cHash=5f68c62752139c2e36ebbc47f6f6e5cc)
(1) Livro de propaganda anticomunista publicado em 1997 que teve grande eco antes de ser desacreditado por historiadores e por metade daqueles que nele colaboraram. (Nota da redacção do Solidaire)
(2) Formação de células no interior de outras células. (Nota da redacção do Solidaire)
(3) Regime político que não reconhece igualdade de direitos às diferentes etnias (vide época do apartheid na África do Sul ou Israel actualmente). (Nota da redacção do Solidaire)