Obreiros da Nossa História – Os Metalúrgicos

Américo Nunes

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nomes dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?

B. Brecht

Obreiros da Nossa História – Os Metalúrgicos, de Vítor Ranita, editado pela página a página. Divulgação – SA, está nas livrarias. Há centenas de livros sobre a resistência antifascista. E na produção editorial recente centenas de outros, apologéticos e branqueadores de Salazar e do fascismo invadem livrarias e hipermercados. São muitas também as memórias, testemunhos e estudos sobre o 25 de Abril de 1974, publicadas. Militares, políticos, ensaístas e historiadores falam de si e de outros homens «importantes» da revolução. Mas são mais raros os que nos falam dos «pequenos», da acção colectiva dos trabalhadores e do povo, protagonistas e heróis maiores da revolução.

Vítor Ranita, dirigente do sindicato dos metalúrgicos do Porto, um dos Fundadores da Intersindical, com este seu livro, obra que é simultaneamente memória, testemunho e trabalho de investigação, dá-nos a conhecer aspectos importantes da luta sindical organizada de um sector operário que foi determinante na luta antifascista dos trabalhadores, nas transformações revolucionárias do 25 de Abril, e posteriormente no combate à contra-revolução.

Parte das suas vivências e experiência profissional para nos dar a conhecer a envolvência social e o ambiente laboral em que começou a trabalhar e se fez militante sindical. Sobre este período oferece-nos mesmo algumas páginas de beleza literária, onde às vezes, com a ironia subtil que só quem o conhece de perto pode vislumbrar completamente, caracteriza episódios do trabalho, e esboça com criatividade o retrato de alguns camaradas de trabalho, fazendo-nos ver a identidade e a cultura operária da sua época.

O Vítor Ranita faz outra coisa rara. Como lutador antifascista, é capaz de com algum distanciamento falar do dia-a-dia dos sindicatos «nacionais», das características, das suas actividades e dos seus dirigentes corporativos, uns muito maus, outros menos maus. Na sua investigação depara em Braga com documentos que lhe permitem descrever com minúcia o trabalho domiciliário na metalurgia nos anos 40, e a luta dos «tachinhas» como eram conhecidos estes trabalhadores, pela dignidade do seu trabalho.

Desenvolve com elementos novos as lutas dos trabalhadores da TAP, da Tomé Feteira e da GRUNDIG, nos anos que antecedem o 25 de Abril, e a sua importância política e sindical, de forma que chega a ser emocionante, em particular na luta das operárias da multinacional alemã em Braga.

A partir de dentro do movimento sindical, onde sempre teve papel de relevo desde que foi eleito presidente do sindicato do Porto em 1970, Ranita utiliza a memória, mas também os instrumentos do historiador, e vasculhando actas, comunicados sindicais, leis, contratos colectivos, e recolhendo testemunhos orais e escritos, relata-nos com pormenor a conquista do seu sindicato ao fascismo, refere-se aos processos de outros como os de Lisboa, Aveiro, Viana do Castelo e Braga, sem esquecer o que se vai passando noutros ramos de actividade e na sociedade em geral. Dá-nos a conhecer com numerosos elementos e dados os processos de negociação colectiva e a luta dos metalúrgicos em torno do seu contrato colectivo, entre os anos de 1969 e 1980. Com relevo para o processo que decorreu entre 1972/1974, que deu origem a uma contínua movimentação de massas e greves, em pleno fascismo. Revela-nos ainda como nos dias seguintes ao 25 de Abril os sindicatos tiveram a capacidade de iniciativa para retirar o processo da instância arbitral corporativa em que se encontrava, o reenviaram ao patronato para negociação directa, convocando-o para a sede do sindicato de Lisboa.

O patronato compareceu no dia 2 de Maio no local para onde havia sido convocado, e na reunião que reatou a negociação directa apareceu, enviado por Spínola, um oficial do exército para servir de mediador, e entregar aos sindicatos uma mensagem sua. As negociações que haviam demorado mais de dois anos sem conclusão em regime fascista foram concluídas ao fim de um mês, e finalmente o contrato colectivo foi assinado no dia 24 de Maio de 1974, consagrando enormes conquistas e direitos.

Ranita conta-nos também, com conhecimento de causa e documentação, o assalto das forças reaccionárias às instalações da União dos Sindicatos do Porto, em 1975, e revela-nos um oportuno e fundamentado relato da noite trágica de 30 de Abril de 1982, em que a polícia de intervenção, armada de G3, e mandada pelo então ministro Ângelo Correia, do governo AD, assassinou dois operários e feriu mais de 100, e descreve-nos a grande resposta dos trabalhadores no dia seguinte, o 1.º de Maio de 1982.

Relato oportuno, tanto mais que no primeiro caso há estudos académicos a afirmar que as instalações sindicais não foram destruídas, contrariando a verdade. E relativamente ao 1.º de Maio sangrento de 1982, em livro recente que pretende ser a história da UGT, dois académicos que aceitaram a encomenda mentem com todo o despudor, ao escreverem sobre os acontecimentos, que: «no Porto aconteceram incidentes graves, com a morte de duas pessoas e cerca de uma centena de feridos. A marcação da festa da UGT para a Praça Humberto Delgado, que se antecipou na reserva daquele espaço, se bem que autorizada pelas entidades oficiais, foi mal recebida pela CGTP, tendo existido conflitos nas vésperas do 1.º de Maio e no próprio dia, com a CGTP a comparecer no mesmo local, para o qual provocatoriamente tinha também anunciado a sua comemoração.» Não lembraria nem ao diabo a ideia de remeter a responsabilidade das rajadas policiais assassinas para a CGTP-IN, mesmo que pretensamente fundamentada em palavras do ministro mandante e comunicados dos verdadeiros provocadores. Bastaria aos autores que em vez de terem apenas consultado os comunicados da UGT e um único jornal, o Expresso, propriedade do então primeiro-ministro, terem consultado também o Livro Branco sobre o 1.º de Maio de 1982, editado pela USP, recheado de documentação e testemunhos que provam exactamente o contrário do que escrevem, e ainda os despachos da ANOP, e os jornais diários, particularmente os do Porto. Mas, por artes mágicas, apenas conseguiram encontrar nos arquivos o Expresso.

Com este seu livro, que para além do relato que nos faz das lutas dos trabalhadores e dos factos que dá a conhecer inclui também apreciações e muita reflexão próprias, o Vítor Ranita presta mais um relevante serviço à causa dos trabalhadores e ao movimento sindical português. Vale a pena lê-lo. Que outros lhe sigam o exemplo para que a memória dos que trabalham, produzem e lutam, perdure e contribua para animar as lutas presentes e as do futuro.

 



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