A infecção

Correia da Fonseca

Era do­mingo à noite, a te­le­visão por­tu­guesa pa­recia ter sido to­mada de as­salto pelos temas eu­fe­mis­ti­ca­mente de­sig­nados por des­por­tivos, isto é, pelo fu­tebol da cha­mada Pri­meira Liga, ac­ti­vi­dade que aliás terá mais a ver com o mundo dos ne­gó­cios que com o des­porto pro­pri­a­mente dito, como de resto bem se sabe. Nos ca­nais es­pe­ci­al­mente vo­ca­ci­o­nados para a in­for­mação a coisa era mesmo su­fo­cante, com equipas de en­ten­didos a ana­li­sarem, co­men­tarem e dis­cu­tirem so­bre­tudo o jogo ha­vido no Es­tádio do Dragão, mas além de breves ex­certos do en­contro pu­demos também ver ima­gens do tu­multo ocor­rido antes dele, quando uma horda de su­jeitos iden­ti­fi­cados como apoi­antes do clube vi­si­tante terá de­ci­dido fazer uma es­pécie de ma­ni­fes­tação de força e acabou, como era pre­vi­sível, cor­rida à bas­to­nada por ele­mentos da po­lícia de in­ter­venção. Era, já se vê, um quadro bem dis­tante da ac­ti­vi­dade des­por­tiva, mesmo se en­ten­dida esta se­gundo um con­ceito muito con­des­cen­dente e alar­gado, e é claro que todos os co­men­ta­dores em es­túdio con­ver­giram na re­pro­vação e con­de­nação da­quela de­mons­tração pú­blica de es­tu­pidez hi­pe­rac­tiva. Al­guém terá mesmo opi­nado que lhe pa­recia es­tarem em alta a agres­si­vi­dade das cha­madas cla­ques «des­por­tivas» e o nú­mero dos in­ci­dentes por elas de­sen­ca­de­ados. E foi então que um dos par­ti­ci­pantes em es­túdio, creio que Tony, trei­nador creio que ac­tu­al­mente em dis­po­ni­bi­li­dade e an­tiga glória do Ben­fica, aventou que esse acrés­cimo de agres­si­vi­dade pode estar re­la­ci­o­nado com a cha­mada crise que per­corre o país e que sus­ci­tará em al­guns o ins­tinto de de­sa­fogar ir­ri­ta­bi­li­dades e de­sejo de trans­gres­sões cí­vicas, mal en­ca­mi­nhado como é óbvio.

(…) Mas há factos

A hi­pó­tese vale o que vale, como é agora moda dizer-se, mas é sin­to­má­tico que tenha ocor­rido a um homem que não dá ne­nhuns si­nais de ser pa­teta, antes pelo con­trário, e que pelos vistos é um ci­dadão que re­para em mais coisas do que as ocorrem nos campos de fu­tebol, isto é, «dentro das quatro li­nhas», como também é agora uso dizer-se. A questão é que, por muito que lhe chamem «crise», usando assim uma pa­lavra que fun­ciona como eu­fe­mismo ten­den­ci­al­mente apa­zi­guador, o que acon­tece ao país, isto é, ao povo que nele vive, tra­balha (ou pro­cura tra­ba­lhar) e sofre, é saber-se ví­tima de uma bru­ta­li­dade enorme para cujas causas não con­tri­buiu. E o menos que disto se pode dizer é que ir­rita, sendo en­ten­dível que em al­guma gente sus­cite uma ape­tência pela agres­si­vi­dade cega, mal ori­en­tada, como forma ins­tin­tiva de de­sa­bafo, como uma es­pécie de droga des­com­pres­sora. À grande mai­oria do povo por­tu­guês como que foi ino­cu­lada uma in­fecção que veio alas­trando, que já vem ma­tando al­guns, e não pa­rece ab­surdo ad­mitir uma re­lação entre essa ver­da­deira agressão (e aqui se evi­dencia a in­teira jus­ti­fi­cação da ex­pressão «pacto de agressão» que vem sendo usada pelo PCP) e a pulsão para a prá­tica tonta e cega de dis­túr­bios evi­den­te­mente ina­cei­tá­veis. É claro que esta pos­sível e até pro­vável con­sequência de­corre de an­te­ce­dentes, entre os quais avulta o es­tí­mulo ao ódio pra­ti­cado pelas pró­prias di­rec­ções de clubes ainda de­sig­nados por «des­por­tivos». Mas nem se­quer será dis­pa­ra­tado ad­mitir que o de­safio às cha­madas forças de ordem, efec­tivo ainda que sempre con­cluído por dis­persão e fuga, tenha al­guma re­lação com o sen­ti­mento er­ra­dís­simo, mas nem por isso im­pro­vável, de que aquela po­lícia que jus­ti­fi­ca­da­mente cumpre a ta­refa de re­primir de­sa­catos tem de algum modo um vín­culo com o Go­verno que es­polia, oprime e por vezes as­sas­sina com as mãos das pró­prias ví­timas. Dir-se-á talvez que pelo ca­minho deste ra­ci­o­cínio, que de facto nem ra­ci­o­cínio chega a ser para se ficar pelo es­ta­tuto de hi­pó­tese re­mota, se vai longe de mais. E será assim. Mas há factos. Cha­mados fome, de­ses­pero, sui­cí­dios. Não ado­cemos as pa­la­vras nem ate­nu­emos a ne­grura da re­a­li­dade ou, di­zendo-o de outro modo, a vi­o­lência da epi­demia: este é, em ver­dade, um tempo de as­sas­sinos de mãos su­pos­ta­mente limpas. E um tempo assim ex­plica e jus­ti­fica muitas coisas, in­cluindo elu­cu­bra­ções que correm o risco de pa­re­cerem ex­ces­sivas.




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