Si me quieres escribir
Ya sabes mi paradero
En el frente de Gandesa
Primera línea de fuego! (do cancioneiro popular da Guerra Civil de Espanha)
Precisamos da história, da reflexão crítica e dialéctica sobre a narração dos factos sociais, económicos, políticos e culturais que a história permite, para podermos, de forma informada e substantiva, inquirir o presente e pensar o futuro. Para acautelarmos e impedirmos, face às derivas do tempo que nos cabe viver, que se repitam as atrocidades, os crimes, o terror vividos no passado – passado nosso, que não está tão longe como imaginamos e do qual, ainda hoje, há vivos e sofridos testemunhos.
Daí a importância, que nos parece evidente, de um livro como Primeira Linha de Fogo, de José Viale Moutinho, dado à estampa num tempo claramente regressivo, em que os vários poderes na Europa – sobretudo a que está, como nós, submetida ao Euro – se arrogam já no direito de sugerir que se «suspendam as constituições nacionais» e pôr em causa (como, em relação a nós, de forma arrogante, prepotente e antidemocrática, o fizeram a senhora Lagard e o senhor Barroso) o edifício jurídico de um país soberano, com mais de oito séculos de História, como Arménio Carlos, em entrevista recente, não deixou de recordar aos mais distraídos.
Nas notas introdutórias a este livro o autor começa por colocar alguns alertas, para que o promitente leitor saiba ao que vai e nesta jornada de mais de 500 páginas se não perca do que nela é essencial: Salvo que a tal palavra de esperança não lhe colherá qualquer significado prático, a menos que quem a pronuncie se erga da poltrona e faça qualquer coisa para estabelecer a mudança. Entrar na luta, por exemplo. O autor quer-nos atentos, vigilantes e indignados – prontos para a luta, portanto. É, no entanto, curioso verificarmos que na entrevista que Álvaro Cunhal concede a José Viale Moutinho, a propósito da sua ida a Madrid, ali enviado em missão pelo Partido, em Julho de 1936, o dirigente comunista atribua um sentido mais amplo e diverso ao termo: «Não somos um Partido de esperança, mas de confiança, de convicções! (...) Gostamos mais de ter convicções com fundamento do que esperança». É esta pedagógica, serena abordagem dos signos elementares do discurso dos antifascistas de ambos os lados da fronteira ibérica, que vamos recolher ao longo desta narrativa exemplar.
José Viale Moutinho reúne neste livro o espólio principal das entrevistas (para além de suplementares textos de investigação e ensaio) que ao longo de meses foi publicando nas páginas dos Diário de Notícias e Jornal de Notícias, realizadas nas zonas mais sofridas da Guerra Civil, tendo por testemunho as memórias de ex-combatentes do Exército Popular, de intelectuais e de pessoas anónimas que viveram e sofreram no corpo as sevícias de um tempo de lacraus e de vergonha. Embora os testemunhos percorram quase toda a Espanha, o autor privilegia a Galiza, seu espaço de afectos e de cumplicidades que está presente em grande parte dos seus textos: No Pasarán (em que o tema da Guerra Civil, da resistência republicana ao terror franquista, está igualmente presente), Trincheiras e Nas Cinzas do Inferno.
A atenção à Galiza, às suas singularidades, cultura e povo, aos seus referentes heróicos, à língua e à proximidade idiossincrática entre o povo português e o galego, reveladas na sua bibliografia, valeu a José Viale Moutinho, em 2012, a atribuição do Prémio Carreira do PEN Clube da Galiza.
Com uma escrita clara, incisiva, vigorosa mas sempre cativante, o autor de Velhas Deusas Empalhadas, conta-nos, através dos prodigiosos labirintos da memória dos seus entrevistados (todos, na altura, com mais de sete décadas de vida) as histórias de sofrimento, coragem e resistência à barbárie franquista, os dias do medo, de solidariedade, de um tempo a erguer-se do chão seco das fomes, decidido a morrer de pé para não viver de joelhos – testemunhos, diz-nos o autor, arrancados das pesadas lajes que os seus protagonistas colocaram sobre a memória desses dias, a par de evocações com lágrimas. Mesmo nos duros e pungentes testemunhos que o autor recolhe, um grito de revolta ainda ressoa por entre o calcinado das lágrimas: Quando olharem as armas de Santiago, lembrem-se do mártir republicano, que a morte não pôde vencer ali. A cegueira, o ódio mórbido pela República, e por tudo o que ela significava, não pouparia sequer aqueles que, não sendo falangistas, eram, contudo, assumidamente católicos como o pintor Camilo Díaz Baliño, morto aos 47 anos, apesar da sua obra estar «profundamente ligada à tradição católica e cristã».
Madrid cercada, as bombas abrindo clareiras de nojo na Gran Via, ovos de uma serpente mais tenaz e sangrenta, a gerar nas terras germânicas o horror maior do século XX, pelas mãos extremadas de uma direita que não olha(va) a meios, a sofismas e a mentiras para alcançar os seus desígnios únicos e supremos: o lucro, o esbulho, o dinheiro ungido deus omnipotente da sua ambição sem limites, sem honra e sem vergonha. Sem hesitações, nem remorsos, mesmo que esse poder, efémero e bruto, se erga sobre milhões de cadáveres. Madrid cercada, a primeira linha de holocaustos futuros – e a voz do poeta, de António Machado, a definir a pungente ignomínia desses dias: Madrid, Madrid, que bem o teu nome soa,/ Quebra-onda de todas as Espanhas!/ A terra dilacera-se, o céu troa/ E tu sorris com chumbo nas entranhas.
Nomes como Gregorio Gallego, Álvaro Cunhal, António Brochado, Garcia Mochales, Isaal Díaz Pardo, Dolores Ibarrúri, Joan Escuer, Marcos Ana, Rosario Sánchez Mora, e tantos, tantos outros, guerrilheiros, resistentes, antifascistas, intelectuais percorrem estas páginas feitas de recordações dos dias insanos, com os traços de sangue da memória em ferida: Hoje tiraram o teu irmão e outro mais desta cela. O teu irmão saiu gritando: Viva o Partido Comunista e a República; Os muros dos fuzilados: com medo de alguma bala perdida, mais de meio século depois, os pássaros não voam por aqui.
Este livro é de assentos, de sangue e lágrimas, de avisos sérios, também. Uma das entrevistadas, frente à vala comum de Ceares, onde repousam mais de cinco mil fuzilados, desabafa: Ah, se abrissem os olhos e vissem como isto está, quem está outra vez no poder!
Abrir os olhos e ver: abramos, portanto, os olhos – é tempo!
Primeira Linha de Fogo,
de José Viale Moutinho
Bertrand Editora