Vemos, ouvimos e lemos

Correia da Fonseca

As palavras são de Sophia, como bem se sabe, mas espero que ninguém se importe por tê-las chamado para título destas duas colunas. É que Sophia utilizou-as para que, naqueles tempos em que a iniquidade e o crime estavam no poder, não tentássemos sequer ignorar o que acontecia em volta de nós, isto é, não nos tornássemos cúmplices por omissão supostamente entrincheirada em alegado desconhecimento. De então para cá rodaram anos, num certo dia a liberdade tomou conta das ruas. Depois disso, a opressão tem vindo, sorna, passo a passo, a retomar os poderes perdidos, a dominar o País e a gente que, habitando-o, nele trabalhando e lutando, consubstancia o que é importante e decisivo na chamada realidade nacional. A cada dia que passa, mais a população portuguesa é brutalmente esbulhada dos seus direitos enquanto se assiste à metódica destruição das estruturas custosamente construídas para que Portugal se tornasse, enfim, uma terra de justiça. E as notícias dessa destruição chegam-nos, as mais das vezes, pela televisão, mensageira ágil e ainda quase sempre submissa, embora já não tanto quanto o foi, mas sempre eficaz. Por isso bem podemos repetir as palavras de Sophia, vemos, ouvimos, lemos, não podemos ignorar. E até podemos acrescentar o que Sophia não escreveu, não tanto por lho ser então proibido quanto por ser desnecessário: que, sabendo, temos de comportar-nos em conformidade com isso.

Sábias palavras

Entretanto, como bem se sabe, o governo que destrói o País e dizima os direitos naturais e legais dos portugueses está cada vez mais isolado, de tal modo que até já exibe dificuldades para encontrar suplências que colmatem as baixas que ocorrem no seu próprio seio. Não se dirá que o governo já pratica o assassínio de cidadãos, mas não se sabe o que devemos pensar quando a televisão nos informa que há lugares do território nacional em que um cidadão só consegue fazer uma ecografia dezoito meses depois de ela lhe ter sido prescrita, como ficámos a saber no passado domingo. E isto no quadro de um país em cujos quatro cantos a fome já se passeia com enorme desenvoltura, em que uma anunciada vaga de despejos ameaça destruir milhares de vidas, em que os filhos partem para a aventura incerta da emigração, enquanto um primeiro-ministro aparentemente sem olhos nem ouvidos se obstina em fazer com que os portugueses paguem, «custe o que custar», juros exorbitantes que fariam a inveja dos mais cúpidos dos usurários. Por tudo isto e seguramente muito mais, não acontece que só os comunistas condenem a actuação do governo, embora seja certo que os comunistas estão, como aliás sempre, na linha da frente do combate às infâmias governativas e outras: para mal da empresa Passos Coelho & Associados, muitos outros cidadãos disparam contra o governo as mais justas críticas, o que obviamente é relevante. Ainda há poucos dias, em entrevista na TVI24, António Mega Ferreira disse coisas fundamentais acerca da actual situação do País e da desastrosa gestão do governo: em verdade, disse coisas que o Partido Comunista Português anda a dizer há muito tempo, arrostando com a habitual calúnia de que se limita a repetir cassetes, e é presumível, se não evidente, que Mega Ferreira é um entre muitos. Perante casos como estes, que aliás a cada dia que passa mais crescem em número porque os factos insuportáveis mais se multiplicam, não se trata tanto de o PCP desejar alargar uma unidade «patriótica e de esquerda», como diz a fórmula que vem sendo repetida, como o facto de essa unidade ser como que gerada, segregada, pela brutalidade governamental por invenção própria ou encomenda alheia. É sabido, é histórico, que a opressão gera os anticorpos que a virão destruir. O doutor Salazar, agora em fase de canonização pelos seus devotos, disse um dia que «não se pode governar contra a vontade de um povo», omitindo com a hipocrisia que lhe era própria que a vontade do povo português estava então acorrentada pela acção terrorista da PIDE e silenciada pela mordaça da censura. Talvez o doutor Passos, que decerto não pensará em recorrer a tais práticas, se deva debruçar um pouco sobre tão sábias palavras. Porque nós, o povo, vemos, ouvimos e lemos.




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