Um mestre da literatura realista
Aquilino Ribeiro morreu há 50 anos, em 27/5/1963.
No corrente ano comemora-se também o centenário da publicação do seu primeiro livro de contos – Jardim das Tormentas.Estamos perante duas importantes efemérides que justificam que recordemos esse grande nome, não só da literatura portuguesa como da nossa vida colectiva, e cujos restos mortais estão, merecidamente, no Panteão Nacional.Juntemos a tais efemérides uma outra: os 150 anos sobre a extinção do morgadio, em 1863, estrutura fundiária sob a qual decorre a saga familiar que deu origem a uma das obras-primas de Aquilino: A Casa Grande de Romarigães.
Aquilino Ribeiro, filho de um padre e de uma camponesa, nasceu em 13/9/1885, em Carregal da Tabosa, concelho de Sernancelhe. Aos dezassete anos vai para Viseu estudar filosofia e, pouco tempo depois, «em obediência aos piedosos desejos de sua mãe» segue para o Seminário de Beja com o objectivo de frequentar o curso teológico, o qual, a meio do segundo ano, acaba por abandonar.
«Uma noite – conta Aquilino – sucedeu a minha queda de Ordenando. Achávamo-nos todos no refeitório, a rezar, depois da ceia, as rezas costumadas.
Eu estava, conforme me pedia a arquitectura do corpo, mãos postas, ligeiramente inclinado, recitando a ave-maria.
De repente ouviu-se uma voz como um trovão. Compreendi que era comigo e me apostrofavam:
- Não quer cá uma cama? Está a rezar sem o devido respeito e atenção.
- Foi como se me dessem uma bofetada. Redargui:
- Sem respeito e atenção rezava o senhor que reparou como eu estava...O refeitório ficou siderado, inclusive o prefeito, Padre Manuel Ançã, que tão injustamente me tirara do meu bom sentido.
Foi quanto bastou. No dia seguinte, um monitor chegou-se a mim muito manso:
- O senhor vai-se hoje embora...
- Já o sabia...».
Terminado, nos termos atrás descritos, o piedoso desejo da mãe para que Aquilino seguisse a vida eclesiástica, este, no regresso a casa, aproveita o tempo a assimilar tudo aquilo que o envolve: a serra, os serranos, aquilo que liga a vida dos homens à vida do campo e, na vida das pessoas, as relações de poder e os afectos.
Embora os seus progenitores estivessem intimamente ligados à Igreja, a verdade é que Aquilino foi, no decurso da sua vida de adulto, um anticlerical, não pela via do panfleto mas sim pela ironia e, por vezes, pelo sarcasmo, bem expresso no livro A Casa Grande de Romarigães.
A este propósito vale a pena reproduzir um pequeno texto que aborda o relacionamento entre o padre capelão ao serviço da «Casa Grande» e o respectivo morgado, de quem, financeiramente, o primeiro dependia.
Certo dia o padre, a pretexto do esforço de dizer missas, reclamou do morgado – Fernando de Mendonça –, um aumento de salário, passando o mesmo de 3.000 réis, para 3.500 réis, a que acrescia mais duas camisas de linho e umas galochas.
Ao pedido do padre, «Fernando de Mendonça recalcitrou. Então a palavra de Deus era negócio de marchandaria como os géneros da tenda? Não havia mesa farta, barbela sempre untada, a caneca do verde sempre às ordens, além de boa cama, lume na lareira, e ripanço que daria para uma comunidade inteira de frades?!
O reverendo Hipácio Leborinho especou e dali não saiu. Houve que ceder. Mas castigaram-no requerendo-o todas as noites para rezar o rosário com a criadagem, o que ele fazia de mau humor e engrolando as orações. E, mais que uma vez na ronda dos santos e santas, virgens e potestades, teve de lhe ir à mão:
- Ó Padre Hipácio, o senhor saltou a Senhora da Luz. Volte atrás. Há lá nada mais preciso que a claridade no corpo e na alma?
- Tínhamos rezado à Senhora das Candeias, e é quanto basta – resmongava o capelão.
- Não basta. (replicou o morgado)
....
Outras vezes era uma santa insignificante da folhinha que escapava por entre os dentes do ritualista.
- Santo Elesbão?... o senhor mascou o nome! – dizia ele (o morgado)
- Olhe que é dos santos que no céu gozam mais de virtude, Queira ele e faz-se, que Deus nada lhe nega. Veja lá, padre, se está com sono, esfregue os olhos! Quer que mande vir um casco de cebola...?».
Este pequeno texto reflecte bem a ironia de Aquilino relativamente a certos membros da Igreja.
Mas voltemos à sua pequena biografia.
Em 1906 abandona o ambiente beirão e fixa-se em Lisboa, isto numa altura em que se envolve no movimento republicano revolucionário, a par da «moina e do jornalismo».
No ano seguinte, na casa que habitava, na Rua do Carrião, dá-se um explosão da qual resultou a morte de dois correligionários políticos, quando, sobre a secretária de trabalho de Aquilino, manipulavam engenhos explosivos.
Aquilino não é atingido pelas bombas porque, segundo ele, «encontrava-se às espaldas, a ver por cima dos ombros deles como faziam».
Este acontecimento obrigou-o a sair clandestinamente do país e a fixar-se em França, onde, em Paris, na Sorbonne, frequenta a Faculdade de Letras.
Entretanto casa com uma colega de origem alemã, de cujo casamento resulta o nascimento do primeiro filho de Aquilino.
A eclosão da I Guerra Mundial obriga-o a interromper o curso e a regressar a Portugal.
Instalado em Lisboa torna-se professor do Liceu Camões, transitando, posteriormente, para a Biblioteca Nacional, na qualidade de segundo bibliotecário.
Entretanto, o fascismo avança.
No ano seguinte ao golpe do 28 de Maio, em 1927, Aquilino está envolvido numa revolta contra a ditadura, que eclodiu no Porto e em Lisboa, respectivamente nos dias 3 e 7 de Fevereiro.
Fracassada a revolta, Aquilino foge à perseguição policial, regressando a Paris.
O fracasso desta revolta não o desarma.
No ano seguinte, em 1928, Aquilino, segundo o testemunho de Manuel Mendes, «Toma parte no frustrado movimento do regimento de Pinhel, contra o governo, e é preso em Contenças, juntamente com o Dr. António Mota, seguindo ambos para o presídio militar de Fontelo, em Viseu, donde se evadem, em 15 de Agosto – dia da Senhora da Lapa –, em condições rocambolescas, tendo uma grafonola a tocar, enquanto serravam as grades de ferro, e continuando a tocar, enquanto saltavam os muros da prisão. Refugia-se novamente em Paris, na continuação do segundo exílio, interrompido por esta curta e aventurosa vinda a Portugal».
Nos quatros anos seguintes, 1929/32 acontecem, sequencialmente, entre outros, os seguintes factos: é condenado à revelia no Tribunal Militar de Santa Clara; casa com uma filha do antigo Presidente da República Bernardino Machado; transfere-se de França para a Galiza e entra semi clandestinamente em Portugal, a que se segue, em 1932, uma amnistia, da qual beneficia.
Em 1958, no seguimento da edição de Quando os lobos uivam os fascistas apreendem o livro e movem-lhe um processo.
Em 1960 é proposta a sua candidatura ao Prémio Nobel de Literatura apoiada inicialmente por cerca de uma centena de escritores, artistas e intelectuais, a que se seguiram posteriormente outras adesões, algumas das quais oriundas de França, Espanha, Inglaterra e Alemanha.
Actividade literária
Aquilino Ribeiro foi um verdadeiro operário da escrita. Escreveu cerca de sessenta obras, repartidas por romances, contos, histórias, novelas, biografias, literatura infantil, a que se juntam várias traduções.
Os especialistas, na avaliação que fazem de cada um dos seu livros, salientam, de acordo com os seus critérios, aqueles que melhor expressam a qualidade literária do escritor.
Nem todos estarão de acordo, mas muitos deles consideram como obras relevantes livros como Terras do Demo; O Malhadinhas; Volfrâmio; A Casa Grande de Romarigães, entre outras.
Para um não especialista, como é o meu caso e por aquilo que julgo ser a opinião dos leitores que chegaram a Aquilino após a edição do livro Quando os lobos uivam, a grande obra-prima é, sem dúvida, A Casa Grande de Romarigães.
Neste pequeno artigo em homenagem a Aquilino Ribeiro vejamos, então, alguns aspectos desta obra, começando por transcrever a opinião de Manuel Mendes:
«... “A Casa Grande de Romarigães”, livro porventura sem par na história das nossas letras, mercê da originalidade e riqueza sereníssima do estilo, de incrível esplendor e fluência de linguagem, concebido com o alento das grandes criações de arte, solidamente arquitectado, aberto, impetuoso como o rolar da própria vida».
Na opinião de Alexandre Pinheiro Torres, em oposição aos intelectuais que se refugiavam nas suas «Torres de Marfim», Aquilino «... tornar-se-à, no século XX, o traço de união entre o Realismo-Naturalismo do século XIX e a meta para que suas obras tendem: o neo-realismo das gerações de 1940 e gerações seguintes. Aquilino é, na verdade, quem assegura, nas primeiras décadas deste século, da forma mais inequívoca e viril, a continuidade da tradição da literatura realista em Portugal».
Óscar Lopes, a propósito, do livro Volfrâmio e das obras de Aquilino na década de cinquenta, refere que «... a crítica e a própria ficção neo-realista amadurecida vêem finalmente em Aquilino um mestre da literatura realista na sua especificidade nacional».
Na crítica em torno da Casa Grande de Romarigães há, porém, um aspecto que é pouco analisado pelos críticos literários. Aliás, o próprio Manuel Mendes refere que «... o tempo é a acção deste romance prodigioso...».
Não me parece inteiramente justa esta apreciação.
Na minha opinião a acção do romance decorre da vivência de uma família vinculada a um morgadio.
O regime do morgadio e a A Casa Grande de Romarigães
O morgadio foi, durante vários séculos, uma forma de organização da propriedade, com especial destaque para a fundiária, pertença de uma família vinculada ao seguinte: a propriedade era inalienável, era indivisível e insusceptível de partilha por morte do morgado.
Ao falecimento deste, a totalidade da propriedade cabia exclusivamente ao filho primogénito.
Os restantes filhos chuchavam no dedo, o que potenciava verdadeiras tragédias sociais, muitas delas referindo que, aos restantes filhos varonis, cabiam apenas a carreira das armas ou a vida eclesiástica e às filhas, caso não usufruíssem de um vultoso dote, a clausura do convento, embora muitas dessas mulheres não tivessem a mínima vocação para esse tipo de vida religiosa.
No fundo, o primogénito era o senhor e os irmãos mais novos não passavam de subalternos o que, por vezes, dava azo a desavenças no interior da família, designadamente entre irmãos.
A instituição do morgadio em Portugal remonta ao período medieval e, segundo Armando de Castro, destinou-se «... a defender a base económica territorial da nobreza».
De facto, não havendo possibilidade de partilhas após o falecimento do morgado, a propriedade permanecia inalterada e, teoricamente, inalterado o poder económico do sucessor, ou seja, este não tendia a empobrecer em virtude da proibição do desmembramento da propriedade. Desta forma, o rei podia contar com a existência de uma nobreza estável, mesmo que ela não passasse de uma pequena nobreza rural como é aquela que, localizada no Alto Minho, é retratada por Aquilino no seu livro A Casa Grande de Romarigães.
O regime do morgadio, com o decorrer dos anos, sofreu algumas alterações, nomeadamente em 1771 e 1775 que impuseram um limite mínimo no rendimento da propriedade para haver acesso à constituição de um morgadio.
Posteriormente, com o aumento do poder da burguesia e com o aparecimento de formas pré-capitalistas, esse regime foi condenado à extinção porque o sistema capitalista não permitia, em nome do funcionamento livre do mercado e da mobilidade de capitais, que um património fechado, o património sujeito ao morgadio, estivesse quer à margem da compra e venda de terras e propriedades, quer das mutações sociais derivadas da mobilidade do capital.
Após a revolução burguesa de 1820 as coisas alteram-se.
Em 1835 e 1860 são estabelecidos condicionalismos aos morgadios então existentes.
Finalmente, em 1863, os morgadios são extintos, salvo o da Casa de Bragança, associado que estava ao príncipe herdeiro da coroa portuguesa.
É neste contexto que decorre a saga familiar descrita por Aquilino no livro: A Casa Grande de Romarigães.
As personagens principais são os morgados, a sua família, os parentes, mesmo os mais afastados, os padres e, recorrentemente, as criadas, obrigadas a servirem todos aqueles, quer nas lides da casa, quer nas actividades agrícolas, quer ainda no prazer sexual de que em certos caos resultavam filhos bastardos, onde, pelo menos num caso, nas relações de poder associados à transmissão da propriedade, um filho de um morgado e de uma criada acabou por aceder à chefia do morgadio.
Aliás, A Casa Grande de Romarigães criada no século XVII, na vigência dos Filipes teve a sua génese na relação sexual do reverendo abade, Gonçalo da Cunha, com a filha de um carpinteiro ao seu serviço. Dessa relação nasce uma criança, de nome Domingos que, de tenta idade, por decisão do abade, passou a viver na «Casa Grande» e com o qual se inicia a história da família.
Aquilino Ribeiro descreve toda a evolução desta família desde o período atrás referido até ao século XIX referindo os períodos de prosperidade e de decadência, incluindo a morte de um morgado, associada pela população a um assassinato atribuído ao irmão que, sendo segundo filho, não teve acesso à titularidade da propriedade.
Certo dia, relata Aquilino Ribeiro, «... uma tarde, mansa e activíssima tarde de Primavera, um dos moços, que tinha ido à Codesseira e seguira o atalho que, em boa parte do trajecto, costeia o corgo, voltou ofegante e em alta grita:
- Acudam que se afogou o senhor D. Plácido!
Afogou-se no chafurdo do Moinho, abaixo do Povo!».
D. Plácido gostava de pescar no rio. Houve na altura quem tivesse visto um vulto por detrás deste morgado, quando este pescava, e que o teria empurrado para a água, provocando-lhe a morte.
Tal vulto foi atribuído ao seu irmão, ao qual, pela norma vigente, caberia o morgadio caso D. Plácido viesse a falecer e não tivesse filhos, o que era o caso.
A D. Plácido segue-se o seu provável assassino, Fernando de Mendonça, que usava o apelido da mãe para «... esconder a sua posição de filho segundo...» e que acaba por casar com a noiva da vítima, considerada a herdeira mais rica das redondezas.
A vida deste morgado acabou, porém, numa tragédia. Os remorsos afectaram o seu dia-a-dia, sobretudo quando começou, segundo ele, a ouvir nos corredores e salas da «Casa Grande» gemidos sob a forma de ai..ai...ai... sugerindo vozes do falecido irmão.
Os familiares acabaram por referir que «a cabeça já lhe não governa». A mulher, que havia sido a noiva do irmão, abandona o lar e aquele a quem foi atribuída a morte de D. Plácido acaba por se enforcar.
Sucede-lhe D. Luís de Azevedo que, na boa tradição da pequena nobreza rural do Alto Minho, no contexto das lutas entre as facções liberais e absolutistas opta pelo ultra reaccionário D. Miguel, a cuja aclamação em 1828, em Lisboa, estaria presente, em representação dos povos de Coura.
Iniciada a viagem em direcção à capital do país, na companhia de outros comparsas e criados, sucedem-se as peripécias decorrentes de um terreno acidentado onde praticamente não havia estradas dignas desse nome. Contudo, a peripécia mais desagradável foi um encontro com um grupo de «malhados», apoiantes dos liberais, onde, num clima de ódio recíproco e numa troca de tiros, D. Luís de Azevedo foi morto por um apoiante de D. Pedro e cujas últimas palavras teriam sido:
- Casa de Romarigães... casa da minha alma, que te não torno a ver!
Aquilino Ribeiro, nunca associa explicitamente, neste livro, o comportamento dos morgados e das suas famílias à natureza da propriedade a que estavam vinculados.
Nem era necessário.
Contudo, pela leitura desta obra-prima, o leitor fica a saber que a transmissão do morgadio assentava em dois elementos fundamentais: a família e a propriedade. Sobretudo esta, ao impor recorrentemente no âmbito do casamento do morgado um «deve e haver meramente contabilístico» no que diz respeito à dimensão do dote da noiva e à antecipada certeza de que ela garantiria um filho varão para, no contexto do estatuto do morgadio, perpetuar a propriedade.
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Fontes:
- A Casa Grande de Romarigães, Aquilino Ribeiro, Livraria Bertrand, 1957;
- Aquilino Ribeiro, A Obra e o Homem, coordenação de Manuel Mendes, Editora Arcádia, 1960;
- Romance: O Mundo Em Equação, Alexandre Pinheiro Torres, Portugália Editora, 1967;
- Dicionário de História de Portugal, III Volume, dirigido por Joel Serrão, Iniciativas Editoriais, 1968;
- História da Literatura Portuguesa, II Volume, Óscar Lopes, Estúdios Cor, 1973.