O reforço
Estando as coisas a correr muito mal para o povo português, como é tristemente sabido, acontece que também para o Governo a vida não corre bem: entre os que em princípio deveriam apoiá-lo cresce o número dos que parecem não o compreender, entre os que naturalmente se lhe opõem multiplicam-se os que o compreendem lindamente, e entre uns e outros dir-se-ia por vezes que só o senhor Presidente da República nele confia. Nesta conjuntura, entende-se que no Governo cresça a suspeita de não ser muito querido: são as gigantescas manifestações de protesto e recusa, é a proliferação de comentadores discordantes ou hostis na TV ou outros media, são os números da economia e das finanças que parecem mancomunados com a oposição. E o Governo sente-se injustiçado: ele, que está cheio de razão, não é compreendido pelo País, isto é, pelo povo que não apenas se limita a gemer baixinho, o que ainda seria perdoável, mas também reivindica em alta grita outro governo, outra política, outro Portugal, o que já incomoda, e muito. E esta situação embaraçosa, se não intrigante, conduziu a uma conclusão engenhosa e talvez a única possível: se o Governo é competentíssimo, sendo as suas decisões a natural expressão da sua competência, e contudo as gentes protestam, é forçoso concluir que não estão a perceber o que se passa. Segue-se, inevitavelmente, a pergunta: «porquê?». E uma resposta. Poder-se-ia alegar que as gentes não entendem o subido mérito da acção governativa por serem estúpidas, mas é claro que essa seria uma alegação de limitados méritos diplomáticos e convém usar de alguns cuidados. Mais valerá, por isso, optar por uma atitude de modéstia e alguma contrição: segundo ela, o povo não está satisfeito, não se agrupa no consenso de apoio ao Governo com que o senhor Presidente parece sonhar todas as noites, porque o Governo, coitado, tem um defeito, um défice, uma insuficiência: explica-se mal.
Quase uma orientação
Assim, numa de grande autocrítica, o Governo admite que se explica mal, presumindo-se que esse é praticamente o seu único defeito. Trata-se, pois, de remediar essa fragilidade e, para tanto, o Governo tomou providências drásticas: um «briefing» diário. Parece que à imagem e semelhança do que faz o executivo norte-americano, a começar pela adopção da palavra que desde logo sugere um conjunto de virtudes: síntese, atenção ao essencial, impacto. Para protagonizar esse reforço quotidiano falou-se inicialmente do ministro Poiares Maduro, importado de brilhantes actividades no estrangeiro, mas mais recentemente ouviu-se falar num outro elemento, esse recrutado internamente, o dr. Pedro Lomba, que ingressou no executivo com o pitoresco posto de secretário de Estado adjunto do ministro adjunto do primeiro-ministro. No momento em que esta crónica é alinhavada a questão não se mostra esclarecida, isto é, ainda não é nítido quem virá, dia após dia, explicar ao povão a acção governativa e, eventualmente, o país e o mundo; mas já é claro que o Governo identificou a importância fundamental da comunicação social na formação do que se designa por «opinião pública» ou, dizendo-o de outro modo, na batalha das ideias. E está ele, Governo, cheio de razão. Noutros tempos, tinha o governo a comodidade de dispor da censura institucionalizada, de poder impedir vozes mediáticas dissonantes, isto para não falar da PIDE e dos seus métodos de radical eficácia; hoje, coitados, têm os governos a vida mais difícil. A introdução dos «briefing» diários corresponde, pois, ao reconhecimento de que a frente comunicacional tem uma primeiríssima importância, e o caso é que esse óbvio reconhecimento é uma implícita chamada de atenção, quase uma orientação, também para os que se opõem a este Governo, até a este modelo político. Perante a evidência de que o Governo reforça os seus meios de «informação» por ter descoberto a necessidade de adensar os nevoeiros lançados sobre a realidade, é forçoso melhorar e multiplicar as formas de os dissipar. Afinal, esta providência governativa pode servir-nos como útil indicação para o quotidiano combate contra a impostura. E, neste sentido, até podemos convir que se trata de uma boa ideia.