Honra e glória às professoras e aos professores
1. Até ao 25 de Abril de 1974, o sindicato dos professores era um andar apertado de poucos cómodos, na rua do Conde Redondo, sindicato integrado no regime corporativo, que supostamente defenderia os interesses dos professores do ensino particular, de todos os graus e tipos de ensino (nele incluídos os professores do ensino especial). Na realidade não o fazia. A inscrição nele era obrigatória para quem pretendia leccionar no ensino particular (privado) e garantia que o candidato se afirmava concordante com o regime fascista vigente e repudiava o ideário comunista. Tinha umas delegações igualmente pequenas e inoperantes em Coimbra e no Porto.
Com a eclosão do 25 de Abril, em poucas semanas, esta realidade transformou-se e o pequeno andar, umas dezenas de metros abaixo da Polícia Judiciária e da Penitenciária, foi a plataforma de arranque do grande sindicato que agruparia o ensino púbico e o particular, foco de dezenas de milhares de professores, que, reunidos em sessões por vezes intermináveis, discutiam e exigiam, acalorada e democraticamente: um novo ensino dirigido a toda a população, com uma discriminação positiva para as camadas sociais mais desfavorecidas, e melhores e mais adequadas condições salariais e de ensino.
Pretende este arrazoado o quê? Esboçar uma apressada síntese do movimento sindical entre os professores? De forma nenhuma. O objectivo é interrogarmo-nos se a bordoada (nalguns casos em sentido literal) que de há anos para cá é diariamente descarregada nas costas dos professores – culpabilizando-os por todas as desgraças que atingem o ensino – tem razão de existir e se os professores serão mesmo «os inúteis mais bem pagos do país»i.
2. Ora vejamos. Sensivelmente até à data do famigerado Acordo de Bolonha – que, prometiam os acordistas, ia aligeirar, ajustar à realidade e fazer jorrar cornucópias de benesses sobre a qualidade do ensino e dos professores – os professores, maioritariamente professoras, leccionavam pelo menos cinco horas diariamente (25 a 30 horas semanais, de segunda a sábado incluído), horas às quais se acrescentavam as horas de reuniões de grupo, de conselho das turmas, dos conselhos disciplinares, dos conselhos de turmas para atribuição de avaliações, do conselho pedagógico ou do conselho de formadores – se a estes pertenciam –, as reuniões plenárias de professores (para já não falar de sessões de formação ou reuniões sindicais). Tudo somado, dava uma média de trabalho diário «confortável», que dispensava preocupações sobre como, onde e em que tempos dispender os salários sempre à pele.
E é claro que não foram contabilizadas aqui as horas necessárias para corrigir trabalhos, preparar as aulas do dia seguinte, que muitos exteriores ao ensino supõem que um professor experiente se limita a repetir os planos e esquemas dos anos anteriores, mas que só quem nunca enfrentou o campo de antagonismos que é uma sala de aulas (antagonismos que portam do meio social, antagonismos entre os alunos e o professor, antagonismos entre os alunos entre si) fantasia que é possível.
É verdade que se entrecruzam com os antagonismos puros momentos de alegriaii, prazer, descoberta, aprendizagem, por parte de discentes e docentes. Não obstante este prazer verdadeiro, que recompensa, não cancela o esforço dispendido. E estas horas diárias de preparação do trabalho do dia seguinte, por ventura o mais importante do trabalho das professoras/es, é variável de docente para docente, mas só um candidato ao suicídio psicológico e profissional, menospreza.
Honra, pois, e glória (pelo menos alguma) «aos inúteis mais bem pagos do país» capazes de atravessar tais florestas de horários e acartar tais fardos de trabalho, despertando em si mesmos e nos alunos momentos de prazer.
3. Colocarão outros a questão: mas os professores correm por vocação e quem corre por gosto não cansa.
Amigos, desçam ao chão da realidade social: os professores não enveredam pela sua profissão de forma diferente de outros profissionais, e, em primeiro lugar, vão à procura de trabalho e de um salário para se sustentar e sustentar a família. E pegam o que encontram, o que existe.
Assim é que pessoas licenciadas ou com habilitações académicas suficientes para arquitectura, engenharia, matemática, físico-química, biologia, música, pintura, direito, psicologia, sociologia, filosofia, germânicas, românicas, filologia clássica se viram dentro de uma escola, a dar aulas, porque não acharam outro trabalho. Numa estimativa a «olhómetro», de um professor com quatro décadas de ensino, (estimativa que vale tanto como muitos estudos encomendados, pagos e realizados através do telefone), se 20% dos docentes escolheram a sua profissão por «vocação», podemos todos ficar um pouco mais tranquilos.
Mais uma vez, honra e glória, às professoras/es que em tais condições, após anos de profissão, conseguiram vestir a camisola da docência.
4. Poderá igualmente argumentar-se que uma parte razoável das professoras/es já transportam consigo, de certas licenciaturas, os utensílios pedagógicos necessários para o ensino. Nova ilusão. As disciplinas pedagógicas vigentes até ao 25 de Abril, que acompanhavam as licenciaturas, todas semestrais ou menos que isso, resumiam-se a umas caricaturas da história da psicologia, da história da pedagogia, ao esboço escasso de uma outra concepção pedagógica (Montessori, Dewey), a um resumo igualmente exíguo do parto sociológico, e a uma cartilha de regras didácticas.
Existia também um instituto estatal de pequena envergadura (situado em Alvalade, Lisboa), Instituto de Tecnologia Educativa (ITE), de acesso gratuito, que explicitava e ilustrava como deviam ser usados alguns materiais pedagógicos (o quadro negro, os acetatos, os projectores, etc.), técnicas úteis, celeremente ultrapassadas pela vulgarização dos computadores pessoais, telemóveis, IPAD, IPOD.
Conhecimentos para além destes eram uma papa fina que um grupo de estudo sobre as questões pedagógicas, anterior ao 25 de Abril, meritoriamente, e à sua custa, ia introduzindo em círculos relativamente estreitos, a que se acrescentava a experiência obtida na estranja deste professor ou daquela professora mais viajados.
É, além disso, preciso esclarecer que a Pedagogia com pretensões a uma metodologia científica, e não apenas um conjunto de princípios e convicções filosóficas ou orientações didácticas (por mais respeitáveis que sejam) é uma área científica recente, que se vai afirmando com hesitações, sensivelmente em meados do século XX (que se traduzem, por exemplo, no nome: Pedagogia ou Ciências da Educação?), que se alimenta de inúmeros afluentes (Psicologia, Psicologia Clínica, Psiquiatria, Sociologia, História da Educação e das Ideias, Filosofia, Didácticas, Direito, Estética... e estarei a esquecer-me decerto de algumas outras), que ainda não está segura dos seus métodos experimentais cruciais (procurando-os, por exemplo, na decifração das mensagens criptadas e na análise de conteúdos, na observação por grelhas, nas biografias, etc., etc.).
5. Portanto, depois do 25 de Abril, mais uma vez, e por iniciativa própria, as professoras e os professores tiveram de arrostar um mar encapelado e ignoto de teorias pedagógicas: desde a planificação e a execução das aulas ao minuto, que impunha, por exemplo, posturas corporais (era proibitivo esquecer distraído uma mão no bolso; as duas mãos nos bolsos era pecado capital) ou, para os professores de línguas, falar durante a aula noutra língua que não fosse a língua ensinada (françês, inglês ou alemão); a planificação e leccionação por objectivos (com a descrição das actividades lectivas expressas em verbos bem definidos e diferenciados); as teorias heliocêntricas sobre o professor; a teoria da modelagem pelas práticas de sucesso dos bons professores, as teorias do professor gestor, do professor animador cultural (muito vizinho do professor «enterteiner» de um espectáculo), do professor amigo/companheiro, as teorias de Ivan Ilich (vividas por um professor e pedagogo mexicano, dirigidas a pequenos povoados situados em planaltos mexicanos áridos, onde as aulas aconteciam ao ar livre), as teorias do professor que ensina aprendendo com os alunos (o que se traduzia, por exemplo, no professor de matemática leccionar filosofia, no professor de filosofia leccionar biologia, na professora de germânicas leccionar educação física, etc., etc.).
Em abono da verdade se deve exarar que até ao envenenado Acordo de Bolonha, o Estado português, através dos ministérios da Educação e, por vezes, do Trabalho, investia no processo de formação das professoras/es financiando cursos de pós-graduação, de mestrado, de doutoramento. Por meados da década de noventa o financiamento foi sendo asfixiado e, hoje, estes cursos de formação são caros, saem dos bolsos dos próprios professores ou candidatos a professores, e constituem um processo de autofinanciamento das faculdades, que o Estado submete a um regime de dieta de tempos de guerra (e esta não é uma guerra metafórica).
Uma vez mais, honra e glória às professoras e aos professores que foram capazes de dobrar estes cabos da Taprobana e cegar os Polifemos, digerindo as catadupas de concepções pedagógicas sem ensandecer e ainda conseguindo acender no decorrer das aulas momentos de divertimento e encanto.
6. Notas a finalizar.
6.1 O facto de a docência ter sido até hoje uma profissão mais feminina do que masculina revela o estro aziago sob o qual o ensino se constituiu durante a ditadura salazarista. O salário da docência era um salário complementar. As aulas decorriam durante a manhã ou início da tarde, abrindo a perspectiva a uma jovem licenciada, de conjugar um casamento adequado, complementar o orçamento familiar, ocupar-se dos seus próprios filhos e do lar nas horas sobrantes do dia.
Num número apreciável de casos, como a realidade mostra, estes casamentos não ocorreram ou falharam, e as professoras canalizaram para as suas aulas e para os seus alunos a necessidade de realização pessoal e afectiva, orientação com a qual o Ensino e os discentes só ganharam. Honra e glória lhes seja prestada.
6.2 Como é sabido, dos ovos chocados com carinho em regra saem belos seres vivos, ávidos de vida e de luz. Mas também é conhecido, que de alguns ovos, geneticamente deformados, saem seres escamudos, rastejantes, de línguas bífidas, (uma espécie de dragões de Comoro), que preferem túneis sombrios e concílios esconsos. Gabam-se de escolas e faculdades que frequentaram, ou não. Chamam-se sócrates, mariasdelurdesrodrigues, coelhos, relvas, gaspares, portas e portas. Açulam as Eríneasiii contra as professoras e os professores, destroem os alicerces do ensino público e democrático onde dizem ter passado. O tribunal da História e do Futuro os julgará.
Honra e glória às professoras e aos professores que lhes resistiram e os enfrentaram! Os amanhãs do porvir cantarão o seu louvor.
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ii «gioia» no falar italiano.
iii Deusas violentas que aparecem na mais antiga mitologia grega; os romanos chamavam-lhes Fúrias. Todos os outros deuses as temiam. Eram representadas com cabeleiras de serpentes entrançadas e brandiam chicotes. Quando se apoderavam de uma vítima, enlouqueciam-na, submetendo-a a todas as torturas.