Vão muito longe os tempos da minha frequência de lições de catequese na igreja de S. Pedro, no Seixal, localidade que aliás já então tinha a reputação de não ser das mais devotas porventura por motivos que facilmente se adivinhavam: o Seixal era então terra de alguma fome e muita tuberculose, a repressão abatia-se duramente sobre os que seriam comunistas mais os que apenas tinham o ar de o serem, os meus companheiros de escola iam para as aulas de alpargatas nos pés e pouco ou nada no estômago, tudo isso e muito mais sendo permitido pelo céu como se não fosse nada que interessasse a quem de lá tudo comandaria. Ainda assim não dou por desperdiçado o tempo que andei por lá, pela igreja de S. Pedro, e estou certo de que o que ali aprendi, salutarmente completado pelo muito que ao longo dos anos fui aprendendo noutros lugares e por outras vias, constituiu uma contribuição não irrelevante para a construção da cultura geral que melhor ou pior me tem servindo ao longo dos anos. E é tempo de esclarecer finalmente que toda esta lenga-lenga introdutória decorre do facto de, nos dias mais recentes, diversas reportagens da televisão portuguesa me terem feito lembrar que aprendi então, nesse tempo distante, que dar de comer a quem tem fome é a primeira das obras de misericórdia constantes do catálogo da especialidade organizado decerto por quem teve para tanto autoridade bastante. Embora nessa altura ninguém mo tenha dito, é de supor que a prática dessa primeira obra de misericórdia dê direito a compensações aquém e/ou além – tumulares: estou a pensar designadamente na concessão das chamadas «indulgências» cujo mecanismo nunca cheguei a entender bem, supondo que não é matéria para miúdos. De qualquer modo, porém, as tais reportagens televisivas deram-me um grande reconforto: soube que milhares de portugueses se aplicaram nos últimos dias a praticar a primeira das referidas obras de misericórdia com óbvio proveito não apenas para os beneficiados pela generosidade de quem «deu de comer» mas também para os dadores que, mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais tarde, hão-de ser recompensados.
A esmola como rotina
Já decerto se terá compreendido que estou a falar das diversas reportagens que na televisão nos informaram da recente onda de dádivas de géneros alimentícios que através do Banco Alimentar Contra a Fome serão entregues aos portugueses «carenciados», isto é, aos que já foram entregues pelo governo ao poder discricionário da Fome. É certo que neste caso a tal primeira das obras de misericórdia é praticada através de um intermediário e não pela entrega directa de «os que podem aos que precisam», o que resulta não em «dar de comer» mas sim em «mandar de comer», assim se reduzindo um pouco o prazer imediato que resulta da virtude praticada. Em compensação, o sistema adoptado tem vantagens. Antes de todas, a de ficarmos a sentir que não é tão grave como parecia que o governo tenha decidido condenar muitos milhares de cidadãos portuguesesa viverem de esmolas. Aliás, a TV tem vindo a dizer-nos também que outras organizações esmoleres estão continuadamente em campo, o que é reconfortante não só para os que afinal conseguem comer qualquer coisa mas também para os que, perante a informação, ficam muito mais descansados e com alguma eventual inquietação aplacada. Mas não é tudo: a televisão informou também que esta recente operação de compra de géneros para oferta aos necessitados ocorreu em cerca de mil e oitocentos supermercados ou centros comerciais. Não me atrevo, é claro, a fazer estimativas acerca do aumento de volume de negócios que desta generosa iniciativa resultou, mas atrevo-me a supor que não foi pequeno. Ainda poderia sonhar que os géneros destinados ao Banco Alimentar teriam sido gentilmente oferecidos pelas gerências, mas infelizmente as câmaras da TV não deixaram de registar a passagem dos dadores pelas caixas, isto é, de confirmar o negócio. Nada de surpreendente, é claro: bem se sabe que «amigos, amigos, negócios à parte». E sobretudo que, mesmo quando a fome é epidémica, «the business must go on».