Cantiga da rua

Nuno Gomes dos Santos

Estas crónicas no Avante! são-me gratas. Nasceu, a ideia delas, quando o Armando Baptista Bastos vociferou, contra mim e a meu favor, estava eu a lançar um livro de crónicas sem jornal de suporte, Eh pá!, a crónica é um género nobre do jornalismo! Crónicas sem jornal são contra-natura! Foi quando eu reparei que a coisa funcionava na net, elogios q.b. a encher-me o ego, mas... olha que caraças, crónica é coisa de jornais, está visto, ando eu práqui a desenhá-las de forma minuciosa e competente, a coisa nem corre mal, há quem leia e goste, ó pra mim todo contente por ser lido, sim senhor, e lá veio o porém, o sacana do Armando a mandar que me ponha no lugar, a dizer És dos jornais e não do resto, das outras coisas que não são jornais, ó Nuno, tem paciência!

Vai daí enchi-me de brios e fui almoçar com o Zé Casanova. E disse-lhe Zé, eu gostava de escrever no Avante!, foi tal qual, e o Zé a dizer-me Saímos às quintas, manda-nos a prosa com a antecedência devida e a coisa sai na quinta feira seguinte, ou na outra, depende da urgência ou do espaço que a gente tenha, 'tás a ver.

Boa, disse eu, um jornal disponível para me derramar nas coisas minhas que sempre pensei serem de mais, não demais, mas de mais gente, de cúmplices, de leitores em comunhão, de críticos a exercerem o seu direito de ser a favor ou contra, Ó Nuno, valham-te os deuses, voltaste ao terreno de jogo, é aí que derrimes ideias, que te expões, que te confirmas.

Este desabafo surgiu-me agora e apeteceu-me muito. Estou a escrevê-lo logo após Passos Coelho ter decretado o funeral da função pública, assim como quem atira os servidores do Estado para os tempos de uma servidão de ignomínia, toca a trabalhar 40 horas por semana, não me venham com essa treta de ser isso uma conquista dos trabalhadores, 35 horas, que é lá isso?, 40 é que é e caluda o bico!

A decisão governamental foi contestada e era o que faltava que não fosse. Passa-se, impunemente, por cima de uma luta de muitíssimos anos para aliviar uma sobrecarga de trabalho pesada. Diz quem manda: não tem importância. Põe-se mais um peso de “donativos” em pensionistas que, trabalhando a vida inteira e à espera do justo contributo de um bolo que, durante esse tempo enorme, ajudaram a fermentar, lhes passa a ser dado com fatia magra. E por aí fora até voltarmos à análise (claro que dirão que primária, ele há isto, ele há mais aquilo) que nos leva a dizer “eles comem tudo e não deixam nada”.

Volto às cantigas, de resto leit motiv do que aqui tenho escrito. Lembro-me de uma, que escrevi há anos, e perguntava: “quem vai disparar o tiro certo para a vida se cumprir?” Sosseguem os olheiros das palavras que, olhando-as, não as vêem, soletrando-as, não as decifram, que não é de pólvora que falo. Claro que a frase é um apelo à revolta, mas o tiro que escrevi significa postura cívica, tomada de posição, coragem de contestar, força para dar a volta a isto. Por isso, e porque há muito que aprendi que a cantiga (também) é uma arma, digo e repito: está na hora de dispararmos o tiro certo. Nas praças e avenidas, empunhando cartazes e elevando vozes, dizendo de nossa justiça. Cantando a verdadeira Cantiga da Rua.



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