Sinais de crepúsculo

Correia da Fonseca

Foi num dos canais da SIC, talvez no SIC Notícias. Acabava de se falar de um livro recentemente publicado, por sinal um livro que Bagão Félix escreveu acerca das árvores portuguesas e não dos crimes perpetrados pelo actual Governo de que até ele, Bagão, se tem mostrado crítico. E, ao encerrar a conversa, o apresentador do programa rematou-a com uma fórmula inspirada no que comummente se lê nos ecrãs das salas de cinema quanto a filmes em estreia: disse ele que o livro já estará à venda «numa livraria perto de si». Ouvi-o e quase me sobressaltei: é que perto de mim havia, sim, uma livraria, mas já não há, fechou. Foi mais uma entre as muitas livrarias assassinadas pelo efeito conjunto do fastio da leitura de livros que há muito alastra entre as gentes, a concorrência consubstanciada pela venda de alguns livros nas grandes superfícies e o alastramento da pobreza e da miséria a segmentos da população que até há pouco tempo ainda compravam livros. Bem sei que muita gente, entre a qual muita cujo parecer me merece respeito, sustenta que a leitura não está em queda, que o caudal de novas edições é impressionante, que os jovens lêem muito mais do que supõem os velhos, isto é, os maiores de quarenta anos. Receio, porém, que a leitura a que eles se referem inclua maioritariamente a leitura em ecrãs de aparelhagem informática, que as edições que tanto abundam sejam quase sempre em quantidade mínima de exemplares, que a leitura juvenil seja muitas vezes feita em diagonal e em total desprezo pela apreensão dos conteúdos. Se estou enganado peço desculpa e, mais do que isso, muito me regozijo. Porém, e até que me convença do contrário, creio, sim, que a leitura de livros caiu muito em desuso e que essa queda corresponde ao fim daquilo a que o canadiano McLuhan chamou «a Galáxia Gutenberg» a que me deu muito prazer pertencer. Prazer e proveito, sublinho, e não apenas ao insignificante grãozinho de gente que sou: a muitas sucessivas gerações na Europa e não só. Em verdade, foi a tal Galáxia Gutenberg que trouxe a civilização europeia, depois exportada para outros cantos do mundo, do final da Idade Média até aos umbrais do século XXI passando pelas luzes de XVIII, pela mais aparente que real vitória da Razão no século XIX e pelas datas fundamentais de 1789 e 1917.

Uma galáxia em extinção

É claro que esta pequena exposição de sabedoria trivial só é para aqui chamada na sequência dos indiscutíveis sinais de quase extinção do mercado livreiro. Encaro-os, entendo-os como sinais crepusculares que anunciam a extinção da Galáxia Gutenberg e isso deixa-me inquieto, não decerto por mim, que já li muito do que tinha a ler, mas pelos que se seguirão. É que, com razão ou sem ela, estou convencido de que a leitura, e a leitura em papel que favorece vagares, alguma eventual pausa para reflexão e até um vínculo afectivo entre leitor e suporte do texto, é um insubstituível caminho para a descoberta e entendimento do mundo e da vida. De onde a quase comoção que me toma perante o encerramento de mais uma livraria, um passo mais para a destruição de um certo mundo. Porém, à comoção segue-se a procura quase irada de um factor de responsabilidade pelo menos parcial, e aí julgo descobrir um culpado: a televisão que, apesar de talvez hoje enfraquecida nos seus poderes, ainda se mantém como importantíssima fonte de modelos de comportamento. Sabe-se de ciência certa que uma referência a um livro feita na televisão desencadeia uma procura dessa obra nas livrarias ainda subsistentes, que efeito semelhante tem a presença na TV de um autor ou, ainda em muito maior grau, uma série baseada num livro. Sabe-se; mas é sabido também que a televisão deporta para canais secundários e horários difíceis os programas que se aplicam a falar de livros e de escritores, assim desde logo dando a tácita informação de que a leitura é coisa a secundarizar. Aparentemente, ela não sabe nem sonha que durante séculos a leitura comandou a vida, mas na verdade é de crer que o saiba, ou que o pressinta, ou que pelo menos tenha ouvido dizê-lo. E, contudo, friamente, comete o crime de cumplicidade com o seu assassínio em curso. Isto é: com a consumação do crepúsculo e a passagem para o tempo das trevas informatizadas.



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