- Nº 2039 (2012/12/27)

Carta ao André

Argumentos

Essa de teres nascido agora deu-me que pensar. Desculpa! Devia ter começado por dizer que és lindo, nem é por ser teu avô que o digo, estou a ser objectivo (deixem-se de bocas estilo avô babado e outras tretas. O puto é lindo e ponto final!).

Olho para ti, mais um exemplo (não apenas mais um exemplo, claro! Estou a falar do meu neto André!), do milagre da vida renovada, do prosseguimento de nós numa coisa pequenina de pedir meças a todas as ternuras, pateta de choros a destempo ou de arremedos de sorrisos sem vislumbrarmos de quê, nós, feitos reis magos a dar o ouro, o incenso e a mirra dos nossos olhares espantados e gratos, ainda não fizeste nada a não ser uns gestos mecânicos sem qualquer objectivo que possamos aplaudir e nós a adorarmos a graciosidade que o nosso amor vê neles, é nisso que dá ver os centímetros das mãos, o decímetro das pernas, o olhar de quem não percebe nada e, por isso, aqui estamos nós para te ensinar a dizer mamã, papá, aconchego, futuro, paz, palavras que te soarão a nada quando te queremos dizer tudo.

Nasceste agora. Olhamos-te quase esquecidos do país, da crise, do Relvas de sorriso de implante, da Merkel do quarto reich, do desemprego à espreita. Olhamos-te e redescobrimos a esperança, libertamos da ferrugem um «we shall overcome» de novo plausível, desenrugamos o futuro porque tu vieste e nos lembraste que o futuro existe. Empertigamo-nos. Dizemos-te André, temos muito que te ensinar. Não sabemos ainda o muito que contigo vamos aprender.

Por enquanto balbuciamos num sussurro Ó papão vai-te embora de cima deste telhado, suplicando-te o sono que tarda. Depois faremos o belíssimo esforço de, colher a colher, compassarmos Come a papa, Joana, come a papa, à espera de que os deuses nos ouçam a prece. Porém, mais tarde, cantar-te-emos outras cantigas, supondo que responderemos a perguntas tuas. E hás-de levar com o Dylan dos bons tempos, com o Zeca de avisar a malta, com o Gedeão musicado pelo Manel, com a Yolanda do Pablo Milanês. Afinal, cantigas de amor a moer-te o juízo na idade das perguntas, Papá, mamã, avô, o que é o amor. E aí a conversa fia mais fino, engasganços, tentativas de explicações enoveladas, coisas cá de dentro que queremos dar-te delas sabendo pouco, delas sabendo tudo e tu a achares que tudo é pouco. E ainda bem.

Tudo isto porque apenas te queremos dar, dando-nos, a sabedoria do pequeno nada que há-de ser ponto de partida para o que hás-de cantar depois. Sabemos, por isso, que não irás descalço pelo caminho. «Estas botas foram feitas para andar», dizia uma canção que não teria mais nada para dizer do que isso. Dessa, vamos ensinar-te apenas esta frase. Depois serás tu a fazer o caminho que se faz caminhando.

Olhamos-te e já te vemos além. Havemos de cantar juntos muitas vezes. Mas, tenho a certeza, hás-de ser tu a ensinar-nos as canções que ainda não sabemos (como sabê-las se ainda as não compuseste?).

A seu tempo dar-te-ei uma guitarra. Depois, atento, ficarei à espera. E, um dia, pedir-te-ei: canta outra vez essa, André. Essa que fala de uma pradaria imensa e fértil. Ou a outra, cheia de lágrimas azuis da cor do planeta limpo habitado por homens verdadeiros que ajudaste a construir. Canta, dir-te-ei, enquanto adormeço no teu colo e tu, num sussurro feliz, me dirás que O papão já se foi embora, do cimo deste telhado.

Nuno Gomes dos Santos