E depois do adeus
Em circunstâncias normais, o título que hoje encima estas duas colunas seria outro e outras, naturalmente, as palavras que o justificariam ou não. Aconteceu, porém, que as circunstâncias se tornaram anormais e que, em consequência, a crónica já escrita teve de ser enviada para outro lugar e com ela o seu título que nela própria era reconhecido como injusto, por excessivo. Intitulava-se ela «O Goebbels de Salazar» e falava de um longo documentário de duas horas, repartidas por duas emissões da RTP2, acerca de António Ferro, o homem que se tornou de facto o ministro da Propaganda do ditador sem que, contudo, o seu perfil humano e político se assemelhasse ao do criminoso que foi ministro da Propaganda de Hitler e até, por um escasso dia, chanceler do já então vencido III Reich. E a alteração de circunstâncias que impuseram a transferência da infortunada crónica, de qualquer modo decerto não tão excessiva quanto o seu título parecia anunciar, foi a decisão tomada por quem manda na RTP, isto é, pelos círculos do costume, de assassinar o programa «Câmara Clara», repetindo de algum modo o crime, cometido há uns anos, de assassinar o sempre saudoso «Acontece» do também saudoso Carlos Pinto Coelho. O argumento então avançado para supostamente explicar o fim do «Acontece» foi o de que o programa teria uma tão escassa audiência que não justificaria o seu custo. Desta vez não foi mencionada a dimensão da audiência, apenas foi dito que o «Câmara Clara» era muito caro. A Radiotelevisão Portuguesa, que investe verbas enormes num conjunto de programas que manifestamente estimulam o mau gosto, a habituação do público a formas toscas e burras de suposto humor, a superficialidade mal mascarada de ligeireza, a ignorância convencida, não tinha alegadamente posses bastantes para manter um programa que informava os portugueses de que, apesar de tudo, a cultura resiste em Portugal. Assim, aconteceu no passado domingo a última edição de «Câmara Clara», e estas duas colunas tinham a natural obrigação de lhe serem dedicadas, com prejuízo para a planeada referência a Ferro, a Goebbels e ao mais de que fosse adequado falar.
As «enormes pressões»
Ao longo desta última edição de «Câmara Clara», Paula Moura Pinheiro e a sua equipa reapresentaram-nos, ainda que por breves instantes, muitas das figuras notáveis, sobretudo portuguesas mas não só, que participaram no programa durante os quase sete anos que ele conseguiu durar. Uma dessas presenças foi a de Rosa Montero, jornalista e escritora espanhola que a dada altura disse que «as pressões para que nos transformemos em imbecis são enormes». Não falava da televisão portuguesa em geral e da RTP em especial, a sua experiência há-de ser sobretudo espanhola, mas a frase é inteiramente aplicável ao que diariamente ocorre entre nós e decerto na generalidade do mundo actual. Já antes, num outro fragmento da sua intervenção, Rosa Montero dissera que «a leitura dá liberdade», e é certamente por isso que a RTP é tão manifestamente avessa a permitir que notícias dos livros e da leitura cheguem em condições de larga audiência aos cidadãos telespectadores. «Câmara Clara», embora confinada ao espaço da «2», obviamente limitador (como se a informação cultural não tivesse lugar legítimo e mesmo necessário num canal generalista como a «1» se arroga de ser), era um tempo de ruptura nesse efectivo bloqueio, como aliás o «Acontece» havia sido, e por isso estava desde sempre sob condenação à morte. É, afinal, o velho ódio das classes dominantes e dos grupos que as servem a tudo quanto abra caminho para o entendimento da vida e do mundo, que ponha em risco as ignorâncias que são estimadíssimas aliadas de todas as opressões. Desde sempre que os caminhos para a cultura estão ameaçados por várias formas de incineração de que a queima pública de livros pelo terror nazi foi um momento ainda não muito distante no tempo. À sua dimensão, «Câmara Clara» surge como mais uma vítima dessa imaginária pira que se mantém activa ao longo dos tempos, e por isso lhe é devida a homenagem que aqui modestamente se lhe presta.