Até amanhã, camarada

Correia da Fonseca

Sendo conhecido que iria sair do Comité Central, e talvez também que é militante do Partido Comunista Português há quase sessenta anos, foi entrevistado por um dos canais de informação da televisão portuguesa. Não lhe fizeram perguntas sobre os motivos da sua saída do CC, isto é, não tentaram sequer lançar os fios iniciais de uma eventual intriga, provavelmente porque o repórter não era homem para se aplicar a esses jogos rasteiros e também decerto por ser sabido que de qualquer modo o entrevistado não iria consenti-los. Aliás, é quase certo para grande parte das gentes que o camarada, com setenta e tal anos de idade, estaria «velho» para funções exigentes, pois bem se sabe que o preconceito contra os velhos tem vindo a alastrar até entre gente admirável. Já aqui devo ter lembrado que Louis Aragon escreveu um dia, a propósito dessa espécie de epidemia não apenas pateta mas também nociva que já então se fazia sentir, que «velhos cretinos são os que umas décadas mais cedo foram jovens imbecis». Cito de memória, mas garanto a rigorosa fidelidade ao sentido. Aliás, todos os dias e em todos os lugares do mundo é possível encontrar figuras de méritos inquestionáveis e inquestionados com idades acima da fronteira etária que separa os «velhos» das criaturas supostamente normais. Não obstante, o preconceito prossegue o seu caminho e, no caso do camarada que partiu do CC mas não partiu do Partido, é natural que os tais setenta e tal anos tenham sido impeditivos da esforçada construção de eventuais «explicações» feias, porcas e más. Até por ser de uma sabedoria corrente que, se «viver sempre também cansa», como um dia escreveu o poeta José Gomes Ferreira (que, recorde-se, se tornou militante do PCP quando tinha oitenta anos de idade e de então em diante continuou a dar provas de notabilíssima lucidez), é natural que lutar sempre também acentue um pouco esse cansaço. Mas não ao ponto de impedir ou sequer enfraquecer a contribuição para a luta comum, aliás enriquecida com as muitas sabedorias proporcionadas pela experiência e garantidas pela memória.

Uma certa alegria

São essas sabedorias e experiências que estão porventura na raiz de alguma alegria que certas criaturas da direita não conseguem ocultar, bem antes pelo contrário, quando lhes chega a notícia de algum dos «velhos» troca o lugar mais evidente que durante longo tempo ocupou por um outro posto mais discreto, ainda que sem quebra da sua utilidade para a luta colectiva e muito menos do seu empenhamento. Em certos casos, ainda que pouco frequentes e em casos de lutadores de topo, a desvergonha e o inescrúpulo chega ao ponto de desejarem transparentemente a morte do combatente, quando não trabalham de um modo concreto no plano miserável do assassínio político. De qualquer modo, quer se trate de um regozijo não dissimulado quer de reações ainda mais desprezíveis, sempre na composição desses comportamentos estará o sentimento de algum alívio, de desafogo sentido perante a notícia de que ficarem em maior ou menor parte diminuídos, à esquerda, o património fundamental da memória colectiva e da experiência partilhada, munições de primeiríssima importância para o lúcido prosseguimento da luta. É neste quadro que se situaria a eventual partida de um «velho». Entenda-se que a entrevista a que se alude no início deste texto não se enquadra neste cenário: o camarada foi muito claro ao afirmar que para ele como para qualquer outro a luta prossegue e que nela continuará presente. Mas talvez a telenotícia deste aparente adeus que de facto não o foi possa ter a utilidade de nos fazer reflectir sobre uma questão importante. Porque reflectir pode e deve ser também uma forma da luta que, como bem sabemos, continua.