O voluntariado obrigatório
Já não sei, nem estou muito empenhado em sabê-lo, qual foi o canal que me surpreendeu ao informar-me de que todos ou alguns dos beneficiários do RSI, o Rendimento Social de Inserção, vão ser obrigados a prestar trabalho voluntário. Muito menos sei se a óbvia contradição entre a anunciada obrigação a ser imposta por via legal e o carácter voluntário referido pela notícia foi nela introduzida com alguma malícia ou se resultou de mera inadvertência. Sei, isso sim, que para além da ironia contida premeditadamente ou não na forma como a informação foi dada, a novidade não me caiu nada bem.
Não duvido, entenda-se, dos bons sentimentos e ainda melhores intenções do dr. Pedro Mota Soares, rapaz modesto que entrou na História por se ter deslocado em motoreta para o palácio onde iria tomar posse como ministro e já o ter abandonado em confortável automóvel do Estado. Mas também sei de uma já velha antipatia do CDS-PP, agremiação política a que o senhor ministro pertence em coerência, creio, com a sua formação cristã, e os cidadãos (se é que esta palavra inteiramente se justifica neste caso) que, desprovidos de qualquer rendimento minimamente significativo e estável, o que naturalmente exclui a esmola, recebem do Estado, talvez como prémio por apesar de tudo continuarem vivos, uns patacos em quantidade modesta e muito regateados.
Bem me lembro da insistência com que o dr. Paulo Portas, patrão do dr. Mota Soares e provavelmente sua estrela polar ideológico-política, denunciou ao longo de anos e anos essa franja de gente presumivelmente miserável ou muito perto de o ser, acusando-a expressa ou implicitamente de se encherem de dinheiros do Estado e não quererem trabalhar. Como se compreenderá, espero, tenho dificuldade em desligar a memória dessa persistente aversão com a medida em princípio saneadora agora anunciada. Com razão ou sem ela, sempre que ouvia Paulo Portas a desfechar mais uma rajada de protestos sobre esses recebedores do RSI, que então até nem se chamava RSI, designados creio que exageradamente por «beneficiários», lembrava-me de um escritor fascista que teve alguma voga nos anos de Salazar e que um dia definiu «os pobres» como «gente que cheira mal». Suspeitava eu, então, que o dr. Portas teria uma pituitária igualmente sensível, e ficava incomodado. Não sustento que o dr.Mota Soares tenha sido contagiado por igual sensibilidade, mas parece que herdou algumas consequências dela. Se me engano, peço desculpa.
Quem sabe?
Foi nestas circunstâncias que me desagradou tanto a notícia da obrigatoriedade do trabalho voluntário para os que recebem o RSI. Talvez antes do mais, porque a novidade me chegou com algum sabor de regresso à escravatura ainda que sob uma forma soft, pois isso de trabalhar sem direito a salário (já que o RSI é obviamente uma outra coisa que tem a ver directamente com um princípio mínimo de solidariedade social) me faz inevitavelmente lembrar os tempos, espera-se que ultrapassados, dos negreiros e seus comércios.
É certo que entre essas velhas práticas e o regime agora anunciado há, felizmente e também inevitavelmente, abissais diferenças. Mas um demoniozinho intriguista que por vezes me segreda coisas pérfidas ao ouvido veio lembrar-me de que, pelo menos, os proprietários de escravos estavam obrigados a dar-lhes habitação e comida, dever que não ocorre entre o Estado e os beneficiários do RSI. Há outras diferenças relevantes, é claro, entre as quais destaco a de que não está previsto que os do RSI venham a ser obrigados a trabalhar em pedreiras. Mas o demoniozinho regressa: «– Por enquanto…», diz-me ele, exagerado.
Entretanto garantem-me que há fraudes, subsídios entregues a quem não os merece? Não duvido de que os haja. Mas aprendi, não sei já onde nem com quem, que em matéria de auxílio a quem dele precise, de partilha, de solidariedade efectiva, mais vale errar pelo excesso que pelo defeito. E apetece perguntar ao dr. Mota Soares se não sabe, se nunca ouviu falar, de milhares de portugueses que não trabalham e contudo têm acesso a interessantes proventos resultantes de trabalho alheio. Talvez, quem sabe?, por vezes do trabalho de alguns que acabaram recorrendo ao RSI.