Salários baixos... e ainda mais baixos
O Instituto Nacional de Estatística tornou público recentemente que, no 1.º trimestre de 2012, havia em Portugal 2 323 900 trabalhadores por conta de outrem com um salário mensal líquido inferior a 900 euros. A mesma estatística referia que, a receber menos de 600 euros, havia 1 301 800 trabalhadores. Estamos a falar de um universo que representa cerca de 63,5% do total de trabalhadores por conta de outrem.
Estes dados, embora importantes para tipificar a modéstia salarial vigente, são contudo insuficientes para uma correcta avaliação dos baixos salários, tendo em conta quer a realidade existente nos vários ramos de actividade económica, quer a realidade existente nos 308 concelhos do País.
78% dos concelhos registam uma média salarial global inferior a 900 euros brutos
O objectivo deste artigo é, pois, desagregar os dados disponíveis, na convicção de que quanto mais desagregados estiverem mais rigor haverá no conhecimento da dimensão dos salários de miséria existentes em Portugal.
Os dados que divulgamos, constantes dos Anuários Estatísticos publicados pelo INE em Novembro de 2011, têm uma estrutura diferente dos dados acima referidos, na medida em que contemplam o salário bruto, ou seja, antes de impostos e integram, para além do vencimento base, o pagamento do trabalho extraordinário e de diversos subsídios.
Por outro lado, estes dados estão desagregados por vários sectores económicos e dizem respeito a cada um dos 308 concelhos do País.
Estamos a falar de dados mais pormenorizados, embora se reportem a Outubro de 2009.
Houve, a partir dessa data até ao presente, algumas alterações mas não as suficientes para alterarem o essencial dessa estatística, face ao congelamento salarial em curso.
Pois bem, essa estatística diz que o ganho médio mensal (vencimento base, acrescido de trabalho extraordinário e subsídios diversos) atribuído aos trabalhadores por conta de outrem do sector privado da economia correspondia a 1034 euros brutos.
Dos 308 concelhos apenas um pequena minoria, cerca de 8%, usufruíam de valores superiores àquela média.
Esses concelhos eram os seguintes:
- Distrito de Lisboa: Oeiras, Lisboa, Amadora, Sintra, Cascais, Vila Franca de Xira e Loures;
Distrito de Setúbal: Sines, Alcochete, Palmela e Setúbal;
Distrito do Porto: Porto, Matosinhos e Maia;
Distrito de Beja: Castro Verde;
Distrito de Castelo Branco: Vila Velha de Ródão;
Distrito de Santarém: Constância;
Distrito de Portalegre: Campo Maior;
Distrito de Aveiro: Aveiro;
Distrito de Leiria: Marinha Grande;
R. A. dos Açores: Ponta Delgada e Vila do Porto;
R. A. da Madeira: Funchal e Calheta.
Todos os restantes 284 concelhos (cerca de 92%) estão abaixo daquela média.
Estamos perante uma primeira gravosa conclusão.
A segunda gravosa conclusão é a seguinte: cerca de 78% dos concelhos registam uma média global inferior a 900 euros brutos!
Os salários mais baixos estão localizados no Minho, Trás-os-Montes e Beira Interior.
Esta região, que inclui 99 concelhos, detém a maior percentagem de concelhos com médias inferiores a 900 euros (cerca de 95%) e a maior percentagem (71%) dos concelhos com salários inferiores a 700 euros.
É, notoriamente, a região mais deprimida se considerarmos apenas os salários dos trabalhadores por conta de outrem.
Esta situação tem muito a ver com a respectiva estrutura económica e algo a ver com o facto (que importa estudar) de, nos últimos anos, desde 1985 a 2009, ter havido aumentos salariais abaixo da média nacional.
Alguns exemplos:
- Tendo por base toda a actividade económica privada, não houve, naquele lapso de tempo, no distrito de Bragança um único concelho com um aumento salarial médio acima da média do País;
Na Região dos Açores 95% dos concelhos tiveram aumentos salariais abaixo da média do País; no distrito de Faro, 94%; no distrito de Vila Real, 93%; no distrito da Guarda, 93%; no distrito de Castelo Branco, 82%; no distrito de Viana do Castelo, 80%.
Não há uma explicação única para tais situações.
Algumas delas poderão ser explicadas nos dois apontamentos seguintes.
Sector dos serviços
Do ponto de vista estatístico a média do ganho médio mensal no sector dos serviço é de 1088 euros mensais. Este valor só é superado nos seguintes concelhos: Oeiras, Alcochete, Lisboa, Amadora, Porto, Cascais e Sintra.
Há também os casos particulares de Vila do Porto, nos Açores, e Campo Maior, no Alentejo, cujas médias serão, certamente, muito influenciadas por um reduzido número de casos.
Daqui decorre que apenas três por cento dos concelhos (3%) têm, em termos médios, valores superiores à média nacional do sector em apreço.
Os restantes 97% dos concelhos têm, no que concerne à estrutura salarial, muita fama e pouco proveito.
A situação salarial do sector de serviços precisa de ser bem analisada porque dessa análise resultará ideias mais claras quanto àquilo que deve ser o nosso modelo de desenvolvimento económico.
Com efeito, os dados estatísticos disponíveis permitem concluir que 81% dos concelhos têm médias salariais inferiores a 900 euros brutos.
Se retirarmos a esse valor o imposto em sede de IRS e os 11% relativos à Segurança Social, o que é que fica em termos líquidos?
Um outro aspecto que importa analisar insere-se na seguinte questão: como tem evoluído o salário deste sector?
Os dados disponíveis permitem concluir que, de 1985 a 2009, cerca de 75% dos concelhos tiveram, ao longo desses 24 anos, uma evolução salarial média inferior à média nacional no âmbito do sector dos serviços.
Uma parte significativa desses concelhos nem sequer conseguiu neutralizar o efeito nefasto da inflação.
Esta profunda assimetria é transversal a quase todo o território nacional, incluindo as zonas predominantemente turísticas.
No distrito de Faro, por exemplo, dos seus 16 concelhos, apenas Albufeira, Loulé e Portimão superaram, comparativamente à média nacional, as respectivas médias salariais no sector de serviços.
Há casos, na zona serrana, onde nem sequer os aumentos nominais superaram as taxas de inflação.
Estamos, pois, perante um caso clássico de como se impinge o turismo como o ómega e o alfa do desenvolvimento económico e onde a realidade é o inverso da propaganda dos ideólogos da tercearização.
Voltemos ao dado inicial, ou seja, ao ganho médio mensal, estimado em 1088 euros para o sector de serviços.
Este valor está circunscrito, fundamentalmente, ao distrito de Lisboa e a casos pontuais no distrito do Porto, em função da concentração do sector financeiro, segurador, a que se juntam as actividades de informação, comunicação e consultoria.
Estes constituem, salvo uma ou outra actividade, o núcleo que «empurra para cima» a média salarial do sector de serviços.
Do outro lado da balança temos cerca de 555 000 trabalhadores do comércio, cerca de 210 000 trabalhadores do alojamento e restauração e cerca de 121 000 trabalhadores ligados ao sector social que «empurram para baixo» a média salarial. (Nota: estamos apenas a referir os trabalhadores por conta de outrem).
É isto que queremos?
É esta a tercearização de que necessitamos?
Indústria transformadora
O ganho mensal médio no sector da indústria transformadora é de 930 euros.
Trata-se de um valor baixo, muito influenciado por actividades muito mal pagas como são os casos das indústrias têxtil, vestuário, calçado, mobiliário, entre outras.
Em termos globais, a diferença entre a média global praticada na indústria transformadora e os serviços é de cerca de 15%, favorável a este último sector.
Esta diferença é verdadeira do ponto de vista da média global. Mas aquilo que à primeira vista parece que é deixa de ser se desagregarmos os números.
Tendo em atenção a média do sector (930 euros) verifica-se que 19% dos concelhos têm salários acima dessa média, designadamente em Sines, Oeiras, Setúbal, Lisboa e Vila Velha de Ródão onde esse valor supera os 1500 euros.
Desde já é possível tirar uma conclusão: os salários mais elevados do sector de serviços estão concentrados num reduzido número de concelhos, enquanto na indústria transformadora essa concentração envolve muito mais concelhos, com vantagens para a coesão nacional. Por exemplo, no sector de serviços há, apenas, 23 concelhos com ganhos médios mensais superiores a 1000 euros, enquanto na indústria transformadora esse valor envolve 41 concelhos.
Relativamente à evolução do aumento do ganho médio mensal, enquanto nos serviços 75% dos concelhos estavam abaixo da média, no sector indústrial essa percentagem desce para os 40%.
Se a comparação for feita entre o aumento nominal e o aumento real do salário verifica-se que, no sector indústrial, no decurso de 1985 a 2009, houve apenas seis concelhos afectados, contra os 60 concelhos no sector de serviços.
Tudo isto para dizer o quê? Para dizer que é preciso ter cuidado com as estatísticas e não embarcar nos grandes números e nas médias muito aglutinadas. É preciso desagregar os dados e compreender a natureza e a dimensão das assimetrias.
É evidente que, com a desindustrialização levada a cabo desde o primeiro governo constitucional, o número de concelhos com vencimentos superiores na área dos serviços, comparativamente à indústria transformadora, é maior. Porém, nos concelhos onde ainda existe alguma indústria e sempre que essa integre, mesmo que em doses moderadas, alguma ciência e tecnologia, desde que isto se verifique os salários praticados na indústria transformadora supera quase sempre os salários praticados no sector dos serviços.
Vejamos, a este propósito, alguns exemplos de concelhos onde o salário na indústria supera o do sector terciário:
- concelhos onde a diferença supera os 20%: Vila Velha de Ródão, Sines, Setúbal, Figueira da Foz, Constância, Vila Franca de Xira, Estarreja, Palmela, Aljustrel, Barreiro, Seixal, Matosinhos, entre outros
concelhos onde a diferença está balizada ente os 10% e os 20%: Loures, Marinha Grande, Vila Viçosa, Azambuja, Abrantes, Portalegre, Cascais, Vendas Novas, Aveiro, Entroncamento, Amadora, Almada, Ponte de Sôr, Alenquer, Ovar, Torres Novas, Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra, entre outros.
Mesmo em Lisboa, onde se localizam as grandes empresas de serviços, mesmo aqui, embora por uma pequena diferença (cerca de 3,9%) os salários nas indústrias são superiores aos do sector de serviços.
Em sentido contrário, nos concelhos onde as respectivas actividades indústriais correspondam, predominantemente, ao têxtil, ao vestuário, ao calçado, ao mobiliário, entre outros, nestes casos os salários indústriais são sistematicamente inferiores aos do sector de serviços.
Os casos mais significativos são, entre outros: Felgueiras, Lousada, Guimarães, Paços de Ferreira, Fafe, Barcelos, Santo Tirso, Covilhã, Gouveia, Vila Nova de Famalicão, entre muitos outros.
O confronto entre estas situações não significa, de modo algum, um juízo de valor sobre salários mais justos e salários mais injustos.
No capitalismo não há salários justos.
Não há salários justos numa sociedade injusta.
Mas enquanto não for possível reverter a actual situação há que lutar no contexto em que vivemos por forma a maximizar o valor do salário.
Nessa luta, que envolve muitos factores, cabe a discussão sobre a terciarização e a indústrialização e sobre um conjunto variado e complexo de questões, a todos os níveis.
A nível político. A nível económico. A nível social. A nível cultural.
Comecemos por este último aspecto.
Será que há alguma analogia entre a cultura operária que existiu na cintura industrial de Lisboa e a cultura de serviços que, nesse mesmo espaço, emergiu dos centros comerciais que aí se instalaram?
E dessa alteração, da boutique que substituiu a fábrica, que consequências houve no plano da consciência social e política dos trabalhadores envolvidos?
Eis uma das muitas questões que temos de discutir, no momento em que se assiste a dois movimentos simultâneos:
- Por um lado, o empobrecimento dos trabalhadores por via não apenas da redução do salário real mas, caso único da nossa história recente, da redução do próprio salário nominal, o que significa um duplo roubo;
- Por outro lado, a ofensiva do neoliberalismo nessa tralha ideológica que é o endeusamento do empreendedorismo como forma de resolução do desemprego que essa mesma gente promoveu.
Na luta contra tudo isto, trabalho não nos falta. Vontade, também não.