Contributo para a história do movimento sindical

Saneamento – opção em momento de ruptura revolucionária

Anselmo Dias

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O saneamento a seguir ao derrube do fascismo esteve, como não podia deixar de ser, na ordem do dia. A desfascização constituiu um dever de cidadania na convicção de que a democratização do regime saído do 25 de Abril impunha expurgar do aparelho de Estado todos aqueles que, com reconhecidas responsabilidades, haviam prejudicado gravosamente a população em nome dos interesses do regime deposto.

O saneamento decorre da luta de classes e balanceia em função da relação

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A Direcção do Sindicato dos Bancários de Lisboa não ficou imune a esse propósito nacional e, no âmbito e no contexto da sua área de intervenção, achou por bem colocar à discussão pública um tema que, no Verão de 74, constituía um dos assuntos recorrentes na sociedade portuguesa, ou seja, o saneamento.

Para o efeito, no documento apresentado à Assembleia Geral de 1 de Agosto desse ano, em tom coloquial, a Direcção questionava: «O que é, então, para nós o saneamento?», respondendo da seguinte forma:

«O saneamento é o expurgo da banca de todos os indivíduos comprometidos com o regime fascista que constituem, neste momento, uma barreira ao cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas dado que estão objectivamente interessados em impedir a democratização do país».

Depois nova pergunta:

«E quais os critérios que devem presidir ao saneamento?», que mereceu uma nova resposta:

«Devem ser saneados:

- 1/ Os elementos que, pela sua participação e actuação, foram mentores e agentes do regime fascista, isto é, aqueles que montaram e os que executaram a repressão: é o caso dos legisladores, dos ex-ministros, dos agentes da PIDE, dos informadores, etc.;

- 2/ As pessoas que colaboraram com a ditadura fascista, prejudicando e reprimindo os trabalhadores, nomeadamente os mais combativos, e os que exercendo esta repressão se aproveitaram das suas posições em benefício próprio e egoísta;

- 3/ Os elementos que, eivados de ideologia reaccionária, se encontram, ainda, ao nível dos centros de decisão, numa posição de boicote aos superiores interesses da economia nacional, tentando arrastar o País para o caos económico e lançando a confusão com vista a alimentar aventuras reaccionárias».

Para uma boa compreensão desta última formulação é preciso ter em conta o ambiente vivido na altura, aliás bem expresso naquilo que, pouco tempo depois, sob a consigna «Maioria Silenciosa», era pretendido pela facção civil e militar ligada ao general António Spínola.

No caso dos bancários houve uma grande preocupação em evitar injustiças e criar clivagens desnecessárias.

Com efeito, entendeu-se que:

«Não devem ser considerados no saneamento, sob pena de o adulterarmos, quaisquer casos de vingança pessoal, como não devem, também, ser incluídos os casos de colegas que, embora não estando comprometidos com o aparelho repressivo fascista, se mostraram sempre algo prepotentes em relação aos trabalhadores que dirigiam, não os tratando com o respeito que lhes é devido».

 

Saneamento no interior do sistema financeiro

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O saneamento levado a cabo na banca foi, praticamente, transversal às principais instituições.

No Banco de Angola, em Julho de 1974, foi exigida a demissão do vice-governador, dr. Nuno Morgado por, segundo os trabalhadores, tal dirigente estar comprometido com a política colonialista do regime fascista.

No Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, foi exigido o fim da relação laboral com um cidadão dos EUA, Theodore Anthony Xanthaky, considerado um dos principais dirigentes dos «Serviços Secretos dos Estados Unidos na Península Ibérica». Quanto a dirigentes de topo os trabalhadores deste banco colocaram no âmbito do saneamento Jorge Manuel Pinheiro Espírito Santo Silva, indivíduo com a patente de Comandante de Lança da Legião Portuguesa e membro da FAC (Frente Anti-Comunista), Franco Nogueira, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Raul Ventura, ex-ministro das Colónias, Medeiros de Almeida, Duarte Nuno Henriques, entre outros.

No Banco Português do Atlântico, o âmbito do saneamento abrangeu o dr. Trigo de Negreiros e o dr. Oliveira Dias, respectivamente secretário-geral e assistente da administração desta instituição.

No Banco de Portugal, os trabalhadores manifestaram o seu desacordo pela permanência de dois administradores, os drs. Nunes Mexia e Ramos Pereira.

No Banco da Agricultura, em Janeiro de 1975, os trabalhadores, em reunião geral, deliberaram afastar dos cargos que então ocupavam os administradores Manuel Gonçalves Cavaleiro Ferreira, Paulo Melero Sendim, Rafael Termes Carrero e o director-geral administrativo, Almerindo da Silva Marques. Quanto a este último, foi dado um mês para a administração cumprir a decisão dos trabalhadores. Não tendo havido, em tempo útil, o cumprimento dessa decisão, os trabalhadores organizaram-se em piquetes por forma impedir o seu acesso às instalações do banco.

No Banco de Fomento Nacional, o saneamento de Almeida Cota, ex-ministro de Economia e Finanças do governo de Marcelo Caetano, foi decido em assembleia geral de accionistas, onde o Estado detinha posição maioritária.

No Banco Borges & Irmão, Banco do Alentejo, Banco Crédito Comercial e Industrial, todos ligados ao Grupo Quina, os trabalhadores reclamaram a instauração de um processo criminal a Miguel Quina, o principal responsável do referido grupo económico do qual faziam parte a Eurofil, Icesa, Mabor, Diário Popular, Jornal do Comércio, Star, Super Praças Regedor, Atlas, Latina, Alcácer, Companhia Portuguesa de Pesca, Data, Eurofina, entre outras de menor dimensão.

No Banco Fonsecas & Burnay, os trabalhadores expulsam um ex-legionário e membro da FAC, Rui A. Vasconcelos Sousa de Andrade. Em 6/5/1974, por unanimidade e aclamação, os trabalhadores exigem a demissão do presidente do conselho de administração, dr. Correia de Oliveira, dadas as suas inequívocas ligações e o seu indiscutível comprometimento com o anterior regime.

Estes casos são aqui referidos a título de exemplo. Os processos ligados ao saneamento começaram logo após o 25 de Abril e acompanharam o processo revolucionário porque, como bem dizia o general Vasco Gonçalves: «A Revolução não se faz com fascistas».

Porém, nem sempre, em todos os bancos, houve uma total consonância entre o acto de decidir e o acto de cumprir no que diz respeito ao saneamento. Houve alguns hiatos. Os atrasos foram resolvidos com a nacionalização da banca, data em que os dirigentes, delegados sindicais e demais activistas encerraram os bancos, não sem antes terem tido o cuidado de retirarem todos aqueles que aí se encontravam a laborar.

Um dos exemplos mais elucidativos do saneamento levado a cabo nesta fase revolucionária diz respeito ao Banco Pinto & Sotto Mayor onde, no dia 11 de Março, foi vedada a entrada nas suas instalações de dezanove altos quadros, bem como dos sete administradores, entre os quais o conde de Caria, cujos nomes constavam de um comunicado por forma a que todos os trabalhadores tivessem conhecimento. Nesse mesmo dia a comissão de delegados, no seu comunicado n.º 4, torna pública a decisão de suspender um inspector do banco devido a comportamentos inadequados na agência de Beja.

 

Saneamento no interior do sindicato

 

Como consequência das orientações definidas em 1/8/1974, na assembleia geral do Sindicato dos Bancários de Lisboa, foram expulsos de sócios os elementos que, a seguir ao encerramento do sindicato em 1971, estiveram à sua frente na qualidade de membros da Comissão Administrativa, indigitados pelo governo de Marcelo Caetano.

Um funcionário que, durante o período da direcção presidida por António Ferreira Guedes, havia dado informações à PIDE, foi despedido do sindicato.

Entretanto, dois bancários, um do Banco Espírito Santo de Lisboa e outro do Banco Borges & Irmão de Faro, foram presos decorrente da investigação levada a cabo pela Comissão de Extinção da PIDE-DGS.

Relativamente a este último, que transmitiu àquela polícia política o desenrolar de uma reunião havida na cidade de Faro com a presença de inúmeros trabalhadores bancários, é possível com detalhe recordar o comportamento do referido «bufo», de nome Esmeraldo Gonçalves Nunes (vide informação 23/74 do Sindicato dos Bancários de Lisboa), que, além do relatório dirigido à PIDE, anexou a tarjeta destinada a mobilizar os associados do sindicato para participarem na referida iniciativa.

Com efeito, na reunião atrás referida, aquele indivíduo sentou-se na primeira fila e, através de graçolas, tentativas de interrupção e perguntas constantes, tudo fez, não só para prejudicar o andamento dos trabalhos, como para desviar a discussão para temas tendentes a justificar aquilo que mais tarde se veio a saber: tratava-se de um informador da PIDE.

A princípio houve uma certa contemplação, mas à medida que o tempo ia decorrendo os dirigentes sindicais aperceberam-se de que estavam perante um «provocador», a quem solicitaram que não interrompesse a intervenção da direcção. Caso quisesse intervir, que se inscrevesse na altura oportuna, cujo formalismo lhe garantia poder questionar tudo aquilo que entendia questionar no respeito pela «Ordem de Trabalhos».

Quando, após o 25 de Abril, os arquivos da PIDE foram abertos e se descobriu a ligação deste indivíduo à PIDE, ficou clara qual a intenção daquele empregado bancário na referida reunião, cuja prisão, pelas autoridades competentes, aconteceu aquando da sua deslocação à sede do Sindicato (Rua de S. José).

Entretanto, decorrido vários meses, eclode o 25 de Novembro.

Ligado a este acontecimento, os seus vencedores, em 18/1/1976, através do Conselho da Revolução, nomeiam uma Comissão integrando militares e civis, na perspectiva de colocar no banco dos réus a componente mais progressista do MFA, a pretexto de, após o 25 de Abril, ter havido «prisões arbitrárias», «faltas de garantias judiciárias», «torturas», «tratamentos cruéis», etc, etc.

Essa Comissão era assim constituída:

Da parte militar: Henrique Alves Calado, brigadeiro; José Júlio Galamba de Castro, tenente coronel; Rogério Francisco Tavares Simões, capitão de fragata e Manuel José Alvarenga de Sousa Santos, tenente coronel.

Da parte civil: António Gomes Lourenço Martins, juiz de direito; Ângelo Vidal de Almeida Ribeiro, advogado; José de Carvalho Rodrigues Pereira, advogado e Francisco de Sousa Tavares, advogado.

Estas personalidades, algumas das quais não reuniam as condições mínimas para o exercício da função imposta pela Conselho da Revolução, foram, pois, os autores do famoso «Relatório da Comissão de Averiguação de Violências Sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares», documento vulgarmente conhecido por «Relatório das Sevícias».

É em nome deste relatório, numa altura em que o sindicato era gerido por uma aliança PS/MRPP, que o ex-presidente da direcção do Sindicato, em exercício na altura da prisão do «bufo» atrás referido, é intimado a comparecer, em Belém, nas instalações do Estado-Maior General das Forças Armadas, para ser inquirido num processo interposto por aquele informador da PIDE, com o argumento de, aquando da sua prisão pelo Copcon, ter sido espancado nas instalações do sindicato, o que era totalmente falso.

O interrogatório levado cabo por um jovem oficial da Marinha, assessorado por um escrivão agarrado a uma velha máquina de escrever, revelou uma cena caricata. Era evidente o desconforto do inquiridor e era igualmente evidente o incómodo do interrogado, ao ter de assistir ao desenrolar de dois papéis virados do avesso: um informador da PIDE transformado numa angélica vítima e um antifascista travestido de tenebroso torcionário.

Embora não tendo existido consequências daquele interrogatório, não deixou de constituir um enxovalho para quem, tendo sido espiado pela PIDE, acabou envolvido num verdadeiro processo kafkiano, promovido pelos vencedores do 25 de Novembro.

Os relatores desse delirante processo, concluído em Julho de 1976, elaboraram 56 conclusões, formularam duas conclusões e terminaram com uma Nota Final.

Toda esta tralha jurídica foi, de alto a baixo, desmontada num documento designado de «O relatório das sevícias e a legalidade democrática» por um conjunto de professores ligados à Universidade de Coimbra, a que se associaram sete advogados e um assistente da Faculdade de Direito de Lisboa.

O primeiro subscritor foi o prestigiado professor Orlando de Carvalho, da Faculdade de Direito de Coimbra e, dos vários advogados, é de salientar a adesão de Jorge Sampaio, então na sua fase pré-presidencial.

No documento elaborado por estas personalidades e dirigido ao Conselho da Revolução constava, logo no início, o seguinte:

«O (Relatório da comissão de verificação de violências sobre presos sujeitos às autoridades militares) tem constituído grave preocupação da opinião pública portuguesa.

Mais do que um relatório, tal documento é um inexorável acto de acusação para com pessoas que desempenharam funções de destaque nos mais qualificados órgãos político-militares da Revolução Portuguesa.

Acto de acusação, (autêntico livro de juízo)… o Relatório vem apontar à opinião pública uma pretensa situação de (Não-Direito), de (aviltamento colectivo) – como se a Revolução de Abril, que pôs termos a uma longa tirania fascista, tivesse de ser remetida ao banco dos Réus».

Conclusão: o saneamento é uma arma.

Foi usada no processo revolucionário com o afastamento de pessoas ligadas ao fascismo.

Mas também foi usada após o 25 de Novembro, numa tentativa clara de neutralizar as componentes política e militar empenhadas, uma e outra, na implementação do ideal do 25 de Abril.

O saneamento decorre da luta de classes e balanceia em função da relação de forças.

No futuro, em condições específicas, moldadas pelo antagonismo entre o capital e o trabalho, haverá, disso estamos certos, rupturas, quer a nível do regime, quer, sobretudo, a nível do sistema.

Num e noutro caso o saneamento estará, novamente, na ordem do dia.

Aqueles que, então, estarão envolvidos nesse processo, embora com muito trabalho à sua frente, não poderão esquecer as lições do passado.

Da alegria de um passado que ninguém nos tira.

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Fontes:

Relatório de Averiguações de Violências Sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares, 1976,

O «Relatório das sevícias» e a legalidade democrática, Coimbra, 1977;

Documentos da Comissão de Delegados Sindicais do Banco Pinto & Sotto Mayor, Março de 1975;

Comunicados do Sindicato dos Bancários de Lisboa, 1972/5.