Uma arma do patrão

Anselmo Dias

O di­vi­si­o­nismo na ac­ti­vi­dade sin­dical é coisa an­tiga. Antes do 25 de Abril, du­rante o seu exílio em Paris, Mário So­ares tentou pro­mover, na ci­dade de Ma­drid, um en­contro de ac­ti­vistas ban­cá­rios por­tu­gueses, tendo sido en­car­re­gado dos con­tactos o sin­di­ca­lista Mário Pina Cor­reia, li­gado aos meios ca­tó­licos.

Não sa­bemos do su­cesso ou in­su­cesso de tais con­tactos. É pro­vável que al­guns ban­cá­rios, não tendo efec­tuado tal des­lo­cação, fi­cassem, mercê desse con­tacto, não só li­son­je­ados com a de­fe­rência, como en­ga­jados aos pro­pó­sitos do se­cre­tário-Geral do PS em cindir o mo­vi­mento sin­dical, como mais tarde veio a ser con­fir­mado.

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For­mal­mente, a pri­meira ten­ta­tiva de ma­ni­fes­tação de di­vi­si­o­nismo no sector ban­cário ve­ri­fica-se logo após o 25 de Abril, sob a ter­mi­no­logia de «Sin­di­catos Li­vres».

Tratou-se de um mero fo­gacho fo­men­tado por gente opor­tu­nista, e por quem, no âm­bito da ac­ti­vi­dade sin­dical, não tendo lu­tado contra os «Sin­di­catos Na­ci­o­nais», ins­ti­tuídos em 1933 por Sa­lazar, se sentia im­buído do ín­clito dever de com­bater aqueles que ha­viam com­ba­tido a fas­ci­zação sin­dical.

A se­guir a essa me­teó­rica pa­lavra de ordem surgiu uma outra bem or­ques­trada e que havia de dar frutos, frutos bem amargos e cujas con­sequên­cias ainda hoje se fazem sentir.

Fa­lamos do di­reito de ten­dência e, ob­vi­a­mente, do PS.

Tal con­ceito veio a pú­blico pela pri­meira vez num ple­nário re­a­li­zado a 9 de Março de 1975, no Te­atro Vasco San­tana, a fun­ci­onar no es­paço da Feira Po­pular, em Lisboa.

Esse en­contro, para o qual foram con­vi­dadas vá­rias in­di­vi­du­a­li­dades e ins­ti­tui­ções, in­cluindo o MFA e o Sin­di­cato dos Ban­cá­rios de Lisboa, en­volveu cerca de 350 mi­li­tantes so­ci­a­listas e foi pre­si­dido, entre ou­tros, por José Ma­ga­lhães Go­dinho, Sot­to­mayor Cardia e Sal­gado Zenha.

Coube a este úl­timo de­sen­volver, em termos ide­o­ló­gicos, a apo­logia do di­reito de ten­dência, se­gundo o mo­delo re­for­mista do sin­di­ca­lismo francês, opção que mais tarde viria a ser subs­ti­tuída pelo «mo­delo alemão oci­dental», de acordo com a tese de­fen­dida por Torres Couto em De­zembro de 1978, num ple­nário re­a­li­zado na Voz do Ope­rário.

Sal­gado Zenha, in­di­víduo que as­sumiu, em nome do PS, a cru­zada contra o mo­vi­mento sin­dical uni­tário e que – quem havia de dizer? – acabou por me­recer, uma dé­cada de­pois, no con­texto das elei­ções para a Pre­si­dência da Re­pú­blica de 1986, o apoio da­queles que havia com­ba­tido.

Esse apoio, as­su­mido de forma pú­blica, in­seria-se na con­vicção de que Sal­gado Zenha, em opo­sição a Mário So­ares, ga­rantia uma in­ter­venção di­nâ­mica e efec­tiva na so­ci­e­dade por­tu­guesa no es­cru­pu­loso res­peito pela Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa.

A re­a­li­dade exis­tente nos me­ados da dé­cada de oi­tenta não su­blima, porém, aquilo que foi a sua in­ter­venção no di­vi­si­o­nismo sin­dical após o 25 de Abril.

Com efeito, o seu dis­curso no Te­atro Vasco San­tana en­car­reirou os ban­cá­rios so­ci­a­listas a pugnar por um mo­delo de or­ga­ni­zação sin­dical que nunca havia sido equa­ci­o­nado nas as­sem­bleias ge­rais, reu­niões de só­cios, co­ló­quios e ac­ti­vi­dades si­mi­lares, onde, de­mo­cra­ti­ca­mente, era for­mada a von­tade co­lec­tiva dos tra­ba­lha­dores.

É, pois, neste con­texto de ideias im­por­tadas e sub­si­di­adas com di­visas es­tran­geiras, de­sig­na­da­mente em dó­lares e marcos, que o PS pu­blica, pos­te­ri­or­mente, um fo­lheto onde tex­tu­al­mente é re­fe­rido o se­guinte:

«O di­reito de ten­dência é o di­reito de ex­pressão das mi­no­rias, ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado na vida sin­dical».

Na parte final desse fo­lheto, em le­tras maiús­culas, es­tava es­crito:

«POR UM SIN­DI­CA­LISMO DE BASE

PELA DE­MO­CRA­TI­CI­DADE DOS SIN­DI­CATOS

POR UM SO­CI­A­LISMO EM LI­BER­DADE».

O re­fe­rido fo­lheto, ti­tu­lado «LINHA DE ACÇÃO SIN­DICAL», no qual apa­recia o sím­bolo do PS, era a prova pro­vada da in­ter­venção deste par­tido na vida in­terna do mo­vi­mento sin­dical, não obs­tante, no mesmo do­cu­mento, se ad­vogar, hi­po­cri­ta­mente, o con­ceito de «sin­di­cato apar­ti­dário», isto numa al­tura em que se sabia da exis­tência, desde Fe­ve­reiro de 1975, de uma Co­missão Co­or­de­na­dora dos Ban­cá­rios So­ci­a­listas a fun­ci­onar sob a di­recção do Se­cre­ta­riado Na­ci­onal do Tra­balho da­quele par­tido.

O pro­pó­sito do PS, em­bora abran­gente a todo o mo­vi­mento sin­dical, tinha, pela pro­xi­mi­dade das elei­ções no Sin­di­cato dos Ban­cá­rios de Lisboa, um alvo bem de­fi­nido: con­quistar a di­recção desta or­ga­ni­zação de classe.

E sabe-se porquê.

Trata-se de um sin­di­cato re­pre­sen­ta­tivo de um sector es­tra­té­gico da eco­nomia na­ci­onal para onde con­flui a pou­pança da po­pu­lação e com a qual se in­veste onde, como, quando e quanto, de acordo com a von­tade de quem, po­lí­tica e eco­no­mi­ca­mente, do­mina esse im­por­tante sector.

Um sin­di­cato pro­gres­sista, ins­ta­lado no co­ração da eco­nomia, po­ten­ciava, na pers­pec­tiva do PS, um crime de lesa ca­pital.

Um sin­di­cato pro­gres­sista, fa­vo­rável à exis­tência de um forte sector em­pre­sa­rial do Es­tado e em per­feita con­so­nância com o MFA no que con­cerne à luta anti-mo­no­po­lista, era, pois, um alvo a neu­tra­lizar.

Um sin­di­cato, na al­tura muito in­flu­ente e po­de­roso, de âm­bito pluri-dis­trital, com cerca de 22 000 as­so­ci­ados, uma ele­vada taxa de sin­di­ca­li­zação, uma boa or­ga­ni­zação de de­le­gados sin­di­cais dis­persa por oito dis­tritos e dois ar­qui­pé­lagos e uma in­ve­jável si­tu­ação eco­nó­mica, tudo isto in­se­rido no mo­vi­mento sin­dical uni­tário, era na­tu­ral­mente um pe­rigo para o pro­jecto de poder am­bi­ci­o­nado pelo PS.

A cru­zada contra a Di­recção do Sin­di­cato dos Ban­cá­rios de Lisboa, no pe­ríodo de 1971 a 1975, tendo como pano de fundo o atrás re­fe­rido, foi ini­ciada e fi­nan­ciada pelo PS, com o tru­a­nesco apoio do MRPP.

O PSD, ma­nho­sa­mente, man­tinha-se tac­ti­ca­mente à dis­tancia, não se en­vol­vendo for­mal­mente, em­bora, em 28/​8/​1975, tenha en­viado o se­guinte re­cado ao PS e aos seus ali­ados do MRPP:

«In­te­ressa-nos prin­ci­pal­mente que os tra­ba­lha­dores ban­cá­rios con­sigam muito em breve a uni­dade in­dis­pen­sável, mas per­mi­timo-nos, desde já, pôr certas re­servas à sua con­cre­ti­zação no fu­turo, se o sin­di­cato con­ti­nuar a ser do­mi­nado par­ti­dá­ri­a­mente, ainda que com subs­ti­tui­ções».

Tratou-se de um gesto cau­te­loso, em­bora falso, as­si­nado por «Um Grupo de Ban­cá­rios So­ciais De­mo­cratas», mas sem en­volver di­rec­ta­mente aquele par­tido.

Pos­te­ri­or­mente, em função dos grandes in­te­resses, acon­teceu o que tinha de acon­tecer: Mário So­ares e Sá Car­neiro se­laram a sua con­ver­gência po­lí­tica numa con­ver­gente acção sin­dical, em­bora em doses di­ver­si­fi­cadas.

Com efeito, aquando da cri­ação formal da UGT, de acordo com uma no­tícia do Diário Po­pular de 29/​1/​79, gente li­gada ao PSD re­feriu que: «Nós damos o tra­balho, eles en­tram com o ca­pital», dando a en­tender tratar-se de fi­nan­ci­a­mentos pro­ve­ni­entes da Ale­manha e dos EUA, sem es­quecer a «ge­ne­ro­si­dade» es­can­di­nava, hel­vé­tica, entre ou­tras «ge­ne­ro­si­dades».

O di­vi­si­o­nismo é um pro­cesso di­nâ­mico. Em­bora o ob­jec­tivo tenha um alvo pre­ciso, os seus mé­todos e ritmos de ac­tu­ação estão in­flu­en­ci­ados quer pela si­nu­o­si­dade pró­pria da re­lação de forças, quer pelos meios hu­manos e fi­nan­ceiros que o ca­pital está dis­posto a dis­po­ni­bi­lizar.

O di­vi­si­o­nismo teve, entre nós, um iti­ne­rário con­di­ci­o­nado por tais fac­tores.

Ve­jamos al­guns as­pectos desse per­curso e, no caso dos ban­cá­rios, as suas gra­vosas con­sequên­cias.

 

O ite­ne­rário do di­vi­si­o­nismo

 

Há, em ma­téria de cri­ação da UGT, vá­rios rostos a sa­li­entar. Já fa­lámos de Mário So­ares e de Sal­gado Zenha.

Há, também, na cri­ação desta or­ga­ni­zação o en­vol­vi­mento de vá­rias ins­ti­tui­ções, no­me­a­da­mente a Fun­dação Fri­e­drich Ebert, a Fun­dação José Fon­tana, a AFL-CIO, Ir­ving Brown, um co­nhe­cido agente da CIA, entre muitos ou­tros.

Fa­lemos de uns e de ou­tros.

Em 1974 surge a fi­gura de Mar­celo Curto, em cujo es­cri­tório fun­ci­o­nava o CEFNS, sigla cor­res­pon­dente a Centro de Es­tudos Para a For­mação de Novos Sin­di­catos, ou seja, aquilo que na gíria po­pular cor­res­pondia à ter­mi­no­logia de «sin­di­catos ama­relos».

Al­guns destes «sin­di­catos ama­relos», como é do co­nhe­ci­mento pú­blico, in­te­graram o lote de 38 sin­di­catos que deram origem à UGT.

Em 1975, como já foi alu­dido, é a vez de Sal­gado Zenha in­vocar o mo­delo francês, in­fluência que mais tarde viria da AFL-CIO, da Fun­dação Fri­e­de­rich Ebert, in­fluência ali­men­tada, res­pec­ti­va­mente, por dó­lares e marcos.

En­tre­tanto surge a «Carta Aberta», cujos «porta-vozes» mais me­diá­ticos pro­vi­nham dos sec­tores li­gados aos es­cri­tó­rios, à banca e aos se­guros.

O ano de 1976 é um ano mar­cante da «Carta Aberta», cuja reu­nião, em 16/​1/​1976, na ci­dade de Aveiro, marca ofi­ci­al­mente o pro­jecto de di­visão do mo­vi­mento sin­dical sob a égide do PS.

No mês se­guinte é eleita a Co­missão de Re­dacção da «Carta Aberta», cujo texto tor­nado pú­bico é subs­crito por 16 di­rec­tores de or­ga­ni­za­ções sin­di­cais, pe­ríodo que cor­res­ponde ao envio de di­nheiro pro­ve­ni­ente da Es­can­di­návia.

Com efeito, em 29/​8/​1976, Charles Ford, se­cre­tário-Geral da Fe­de­ração In­ter­na­ci­onal dos Têx­teis, fi­liada na CISL, afirmou, se­gundo O Diário de 20/​10/​76:

«Quero agra­decer ca­lo­ro­sa­mente aos países es­can­di­navos, pela sua con­tri­buição para a cam­panha de re­colha de fundos para Por­tugal. Ela pos­si­bi­litou-nos o pa­ga­mento de três agi­ta­dores. Agora, de­pois das elei­ções par­la­men­tares, po­de­remos apoiar os sin­di­catos de­mo­crá­ticos contra a do­mi­nação co­mu­nista da In­ter­sin­dical».

A im­por­tância desta or­ga­ni­zação no mundo la­boral é re­for­çada através da ac­ti­vi­dade de­sen­vol­vida na pre­pa­ração do «Con­gresso de todos os Sin­di­catos», pro­cesso que impõe ao PS um em­pe­nha­mento re­do­brado no di­vi­si­o­nismo, função co­or­de­nada por An­tónio Mal­do­nado Go­nelha, mi­nistro do Tra­balho de 23/​7/​1976 a 28/​8/​1978.

Este in­di­víduo, pos­te­ri­or­mente mi­nistro da Saúde entre 9/​6/​1983 e 5/​11/​1985, é o homem que queria «que­brar a es­pinha à In­ter­sin­dical», de acordo com a ex­pressão uti­li­zada em 3/​12/​1976 no «En­contro Na­ci­onal dos Tra­ba­lha­dores So­ci­a­listas da Cons­trução Civil», ini­ci­a­tiva fi­nan­ciada com 210 000 francos suíços através de uma es­tru­tura li­gada à CISL.

Da mesma forma que Mar­celo Curto in­vestiu na cri­ação de «sin­di­catos pa­ra­lelos», também Go­nelha re­forçou esse pro­pó­sito, so­bre­tudo na área de ser­viços, onde ele pre­tendia criar uma grande Fe­de­ração ten­dente a en­globar os sin­di­catos de es­cri­tó­rios, ban­cá­rios, se­guros, co­mércio, etc.

En­tre­tanto há ajus­ta­mentos na cú­pula da es­tru­tura do di­vi­si­o­nismo: morre a «Carta Aberta» e nasce, em Abril de 1977, a «MA­DISCA».

O ano de 1977 é o ano da afir­mação de Go­nelha, um an­tigo di­ri­gente do Sin­di­cato dos Elec­tri­cistas que chegou a in­te­grar a Tri­la­teral, or­ga­ni­zação fun­dada, em 1973, por David Roc­ke­feller e con­si­de­rada uma das mais se­lec­tivas es­tru­turas de poder a nível mun­dial. A este pro­pó­sito basta dizer que, na­quela or­ga­ni­zação, apenas ti­nham as­sento 170 eu­ro­peus e 120 ci­da­dãos do Mé­xico, EUA e do Ca­nadá. A nível mun­dial, aquando da sua fun­dação, se­riam menos de 400 as «tri­la­te­rais» in­di­vi­du­a­li­dades.

Com tal es­ta­tuto a nível mun­dial não é de es­tra­nhar que Go­nelha tenha, pos­te­ri­or­mente, sido ad­mi­nis­trador da Pe­trogal, da Caixa Geral de De­pó­sitos, da Caixa Geral de Apo­sen­ta­ções, da em­presa Hos­pi­tais Pri­vados de Por­tugal e do Mon­tepio.

«Com­pagnon de route» de David Roc­ke­feller, par­ti­ci­pante nos ple­ná­rios ao lado de Henry Kis­singer, no eli­tista Grupo de Bil­der­berg, o re­fe­rido Go­nelha foi pró­digo em afir­ma­ções es­cla­re­ce­doras.

Assim:

- «Ga­nhámos para o País a ba­talha da de­mo­cracia. Vamos agora de­sen­volver a luta num outro campo: o sin­dical», in O Jornal de 25/​2/​77;

«O sin­di­ca­lismo le­ni­nista acabou em Por­tugal», in Diário de No­tí­cias de 2/​4/​77.

O do­cu­mento de Go­nelha, in­ti­tu­lado «A Questão Sin­dical», é apro­vado em 14/​3/​1977 no Se­cre­ta­riado e na Co­missão Na­ci­onal do PS e elo­giado por Torres Couto numa en­tre­vista, em Maio desse ano, ao Jornal Novo.

É neste con­texto que se vai ci­men­tando, no âm­bito do bloco cen­tral de in­te­resses, uma con­ver­gência acres­cida entre o PS e o PSD no pro­jecto do di­vi­si­o­nismo sin­dical, pro­jecto aben­çoado pelo Ex­presso que, em Abril desse ano, con­si­dera tal ali­ança como «es­sen­cial para que a Carta Aberta dis­pute ao PCP a he­ge­monia no mo­vi­mento de tra­ba­lha­dores».

O Jornal Novo, li­gado à CIP, faz suas as pa­la­vras do jornal de Pinto Bal­semão, tese apoiada pelo jornal a Luta, que, em 16/​5/​78, de­clara: «Al­ter­na­tiva à CGTP-Inter sur­girá até ao fim deste ano». Este jornal, li­gado ao PS, es­tava bem in­for­mado.

Com efeito, a «MA­DISCA» dá lugar à UDTP em 10/​9/​78, cuja exis­tência foi efé­mera. Um mês de­pois, no ci­nema Lu­miar, em Lisboa, é criada a UGT, cujo Con­gresso Cons­ti­tu­tivo teve lugar no Porto, nos dias 27 e 28 de Ja­neiro de 1979.

Cerca de um mês de­pois uma de­le­gação do se­cre­ta­riado da UGT des­loca-se aos EUA a con­vite da AFL-CIO.

Chegou a hora de prestar contas.

Na­quele mês de Ja­neiro de 1979 vêm a lume inú­meras re­fe­rên­cias à dre­nagem de di­nheiro des­ti­nado a fo­mentar o di­vi­si­o­nismo.

No dia 4, a per­gunta do jornal o Tempo

- «E como in­ter­pretar certos bo­atos de acordo com os quais a UGT re­ce­beria di­nheiro da CIA?» me­receu a se­guinte res­posta de Torres Couto:

- «De qual­quer ma­neira é certo que não se fazem ome­letes sem ovos».

No dia 12, em de­cla­ra­ções ao Jornal, Go­nelha re­fere tex­tu­al­mente:

- «Pois bem, eu não es­condo: quem tem apoiado parte das ac­ções da UGT, somos nós, a José Fon­tana». (…) «O que se pode dizer é que da fra­ter­ni­dade e da so­li­da­ri­e­dade do SPD alemão, o Par­tido So­ci­a­lista Por­tu­guês re­cebe co­la­bo­ração e a ajuda para a José Fon­tana. É a Fun­dação Fri­e­de­rich Ebert, é o Par­tido So­cial De­mo­crata Alemão (…). Eles au­xi­liam apenas com o ob­jec­tivo de que em Por­tugal se im­plante a de­mo­cracia e os ideais do so­ci­a­lismo de­mo­crá­tico». (…) E não põem qual­quer con­dição».

No dia 16, o jornal O Diário re­fere que, em Frank­furt, numa reu­nião ha­vida entre Go­nelha e E. Kas­tleiner, membro da Pre­si­dência Fe­deral do Sin­di­cato da In­dús­tria da Cons­trução Civil, este ter ga­ran­tido ajuda fi­nan­ceira à es­tru­tura si­milar em Por­tugal, li­gada à UGT.

Esta dre­nagem de di­nheiro não se quedou no con­texto do Con­gresso Cons­ti­tu­tivo da UGT.

No res­caldo do II Con­gresso, o co­nhe­cido agente da CIA, Ir­ving Brown, envia, da Suíça, um cheque de 10 000 dó­lares a Torres Couto, verba que subiu aos 30 000 contos em 1984, como prova da so­li­da­ri­e­dade da AFL-CIO e da Agência para o De­sen­vol­vi­mento In­ter­na­ci­onal (AID), de acordo com de­cla­ra­ções à NP, em 27/​11/​85, por Rui Oli­veira e Costa, na al­tura di­ri­gente da UGT.

Este valor pe­cava, cer­ta­mente, por de­feito, na me­dida em que, em 29/​11/​85, o Jornal, fa­zendo eco do Li­bé­ra­tion, di­vul­gava que: «Al­gumas fontes es­timam que o mon­tante re­ce­bido pela UGT po­derá atingir 800 mil dó­lares».


Con­sequên­cias do di­vi­si­o­nismo
na vida dos tra­ba­lha­dores

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É neste cír­culo de ami­zades e de fluxos fi­nan­ceiros que se move a UGT, a or­ga­ni­zação sin­dical que subs­creveu o acordo da troika.

Acordo cujo efeito no em­po­bre­ci­mento dos tra­ba­lha­dores e da po­pu­lação em geral tem, na­tu­ral­mente, uma con­tra­par­tida: uma as­si­mé­trica dis­tri­buição dos ren­di­mentos pelos fac­tores ca­pital e tra­balho com vista à ma­xi­mi­zação dos lu­cros dos grandes grupos eco­nó­micos.

O que está em curso é uma vasta ope­ração de dre­nagem de re­cursos da ge­ne­ra­li­dade da po­pu­lação para o nú­cleo mais po­de­roso da so­ci­e­dade, a fazer re­cordar, no plano so­cial, a fas­ci­zação ini­ciada nos anos vinte e trinta do sé­culo pas­sado.

Não temos, é certo, entre nós, a PIDE, a Le­gião e a Mo­ci­dade Por­tu­guesa.

Também, for­mal­mente, não temos a União Na­ci­onal, em­bora, no es­sen­cial tal es­tru­tura tenha pontos de con­tacto na pos­tura con­ver­gente do PS com o PSD/​CDS-PP, no que diz res­peito ao re­tro­cesso ci­vi­li­za­ci­onal em curso.

Também não temos, em letra de forma, as Cor­po­ra­ções e os «Sin­di­catos Na­ci­o­nais», for­ma­tados à con­ci­li­ação de classes.

Mas temos, em con­tra­par­tida, os sin­di­catos da UGT sempre dis­postos, em nome dos man­dantes, a subs­crever o que há para subs­crever em nome dos in­te­resses oli­gár­quicos.

Quem du­vidar desta vas­sa­lagem que ana­lise, a tí­tulo de exemplo, o ne­gócio da trans­fe­rência dos fundos de pen­sões do sis­tema fi­nan­ceiro para o Sis­tema Pú­blico de Se­gu­rança So­cial.

É um ne­gócio exem­plar que se conta ra­pi­da­mente.

Os tra­ba­lha­dores ban­cá­rios, até re­cen­te­mente, nunca es­ti­veram in­se­ridos no Sis­tema Pú­blico de Se­gu­rança So­cial. As pen­sões de re­forma a que ti­nham di­reito es­tavam, desde há vá­rias dé­cadas, in­se­ridas no con­trato co­lec­tivo de tra­balho subs­crito pelos ban­queiros e pelos sin­di­catos.

Es­tamos a falar de uma pres­tação so­cial ex­terna às obri­ga­ções do Es­tado e re­sul­tante de um di­reito dos tra­ba­lha­dores como con­tra­par­tida da venda da sua força de tra­balho. Para fazer face ao pa­ga­mento fu­turo de tais pen­sões, os bancos foram, ao longo dos úl­timos anos, ame­a­lhando um pa­tri­mónio cons­ti­tuído por va­lores mo­bi­liá­rios, imo­bi­liá­rios e di­visas a que deram o nome de fundo de pen­sões.

Pois bem. Che­gados aonde che­gámos por anos e anos de er­radas po­lí­ticas eco­nó­micas e fi­nan­ceiras, as­so­ci­adas à cor­rupção e ao ga­manço, o Es­tado foi obri­gado, por im­po­sição es­tran­geira, a cum­prir de­ter­mi­nada ori­en­tação no que diz res­peito ao valor do dé­fice or­ça­mental. Não tendo meios pró­prios para o fazer, o Go­verno do PSD-CDS/​PP re­solveu re­correr a uma parte desses fundos, es­ti­mados em cerca de seis mil mi­lhões de euros, para sa­tis­fazer as ori­en­ta­ções dos cre­dores in­ter­na­ci­o­nais.

Esse valor, te­o­ri­ca­mente trans­fe­rido para o Sis­tema Pú­blico de Se­gu­rança So­cial, foi, na prá­tica, re­ta­lhado em três par­celas: uma par­cela, a pre­texto das dí­vidas do sector em­pre­sa­rial do Es­tado ao sis­tema fi­nan­ceiro, no valor de três mil mi­lhões de euros, re­gressou ao ponto de par­tida, ou seja, à pró­pria banca, tudo isto a fazer lem­brar uma pes­ca­dinha de rabo na boca; uma par­cela de 1,5 mil mi­lhões de euros des­tinou-se a pagar as dí­vidas do Ser­viço Na­ci­onal de Saúde à in­dús­tria far­ma­cêu­tica; a parte res­tante, cerca de 1,5 mil mi­lhões de euros, ficou, até ver, no Sis­tema Pú­blico de Se­gu­rança So­cial.

Acon­tece que o valor das re­formas a pagar aos ban­cá­rios re­for­mados até 31/​12/​2011 orça cerca de 522 mi­lhões de euros por ano, ou seja, aquilo que ficou re­tido no Sis­tema Pú­blico de Se­gu­rança So­cial es­gota-se em cerca de três anos. Ao fim desse tempo, quem irá su­portar o pa­ga­mento das re­formas a mi­lhares de re­for­mados ban­cá­rios, tendo em atenção que aqueles que, na­quela data, per­fi­zeram os 65 anos de idade ainda terão, em média, mais cerca de 19 anos de vida? Quem irá pagar? O já re­fe­rido Sis­tema Pú­blico de Se­gu­rança So­cial? A Caixa Geral de Apo­sen­ta­ções? O Or­ça­mento do Es­tado, ou seja, os con­tri­buintes que não foram tidos nem achados nesta fal­ca­trua? Quem?

Este ne­gócio, de con­sequên­cias trá­gicas para muitos tra­ba­lha­dores, me­receu a con­cor­dância dos di­rec­tores do Sin­di­cato dos Ban­cá­rios do Sul e Ilhas, uma das mais im­por­tantes or­ga­ni­za­ções da UGT.

Tais di­rec­tores as­si­naram, sem pes­ta­nejar, uma de­cisão to­mada an­te­ci­pa­da­mente pelo in­te­resse comum da banca e do Go­verno, isto sem que os tra­ba­lha­dores ti­vessem sido, como de­ve­riam ter sido, di­rec­ta­mente aus­cul­tados.

Neste com­por­ta­mento e na­quilo que, no pe­ríodo fas­cista, era a prá­tica dos «Sin­di­catos Na­ci­o­nais» afectos ao re­gime, há uma grande si­mi­li­tude. Si­mi­li­tude que adensa ainda mais, nos tempos que correm, anos som­brios.

A UGT, pela sua pos­tura na con­ci­li­ação de classes, pelos com­pro­missos as­su­midos na cha­mada con­cer­tação so­cial e na adesão aos pro­pó­sitos da troika, ca­minha, através dos seus di­rec­tores, ombro a ombro com aqueles que, em nome das ine­vi­ta­bi­li­dades, pro­cedem a uma já vi­sível fas­ci­zação so­cial.

Há quem, no âm­bito desta con­ver­gência, atribua à UGT o papel de traição para com os tra­ba­lha­dores.

Na prá­tica é disso que se trata, mas con­ve­nhamos que não deixa de ser também uma pos­tura con­se­quente de al­guém a pagar a fac­tura a quem in­vestiu na sua pró­pria cri­ação.



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