«Eu queria ser médica ou professora, mas o Salazar tirou-me da escola aos sete anos e pôs-me atrás de uma máquina de costura.» É esta a minha primeira memória de Salazar, ouvida e repetida pela voz da minha avó muito antes de ter idade para compreender o seu significado. Ao longo dos anos, somei a esta outras impressões do líder fascista, confirmando a imagem que dele tinha quando era para mim um completo desconhecido do qual sabia apenas uma coisa: era o responsável pelos sonhos desfeitos de alguém que me era, e é, muito querido. Alguém a quem, nesses anos negros do fascismo, nunca seria permitido muito mais do que milhares de noites em claro a cortar, a alinhavar e a coser – a troco de quase nada.
Veio-me esta recordação a propósito da ideia do presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, João Lourenço, de criar a marca Salazar para os produtos da terra. Explica o autarca (o mesmo que quer criar o Museu Salazar, entretanto rebaptizado Museu do Estado Novo) que em tempos de grave crise há que «deitar a mão a tudo o que nos possa ajudar a ultrapassar as dificuldades» e que a perspectiva do município é «objectiva e histórica». O primeiros destes produtos será o vinho, a ser lançado lá para Agosto com o nome Memórias de Salazar. Falta ainda conceber a garrafa e o rótulo que, segundo João Lourenço, terá que contar «alguma coisa da história deste período». Mas outros produtos se seguirão.
Se a perspectiva for realmente «objectiva» e «histórica» e se nos rótulos se contar efectivamente «alguma coisa da história deste período» é legítimo esperar que surja em breve o chouriço Memórias dos Safanões a Tempo, termo com o qual o filho da terra (para não dizer de outra coisa) designava as torturas infligidas aos presos políticos – e que não raras vezes provocaram a morte dessas «criaturas sinistras», como chamava a esse tipo de prisioneiros. E não seria de estranhar que aparecesse nas estantes de um qualquer supermercado o queijo Memórias do Tarrafal, campo de concentração criado sob indicação e vigilância de Salazar e onde os presos eram recebidos pelo director com a saudação, que para muitos foi premonitória, de que «daqui ninguém sai com vida. Quem vem para o Tarrafal vem para morrer».
«Histórico» e «objectivo» seria também chamar aos pinhões Memórias das Medidas de Segurança, criadas pelo natural de Santa Comba para permitir a prisão perpétua dos presos políticos, ou às maçãs Memórias da Guerra Colonial, para onde o santacombadense enviou milhares de jovens portugueses, muitos deles para a morte. Haja produção na terra de Salazar e João Lourenço, pois nomes não faltam para preencher os rótulos: Memórias da Censura, Memórias do Analfabetismo, Memórias da Fome, Memórias da Exploração, Memórias da Emigração...
Bem sei que não são estas as memórias que João Lourenço pretende guardar de Salazar. Nem ele nem os que, no comando da economia e da política do País, querem fazer regressar muitos aspectos de um passado que Abril derrubou. Mas o que não sabem, e daí talvez saibam, é que encontrarão a resistência daqueles que directa ou indirectamente guardam vivas as memórias de Salazar. Alguns ainda mais vivas do que a minha avó, a quem «apenas» se matou um sonho...