O Zeca e a liberdade

Nuno Gomes dos Santos

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Há quem viva, ou pelo menos escreva – descrevendo-se, diga-se – apenas com um fito: desancar tudo o que é esquerda. Seja de que forma um sentimento, uma opinião, um comportamento tenham forma de expressão, o homem lá está, na primeira linha, brandindo a palavra como se lhe fosse possível, com ela, digo a sua palavra, criar uma barreira definitiva, uma cortina de fumo perene, entre os que, vendo, ignoram ou promovem a própria cegueira e a divulgam, e os que, vendo, afirmam ver.

O método utilizado, no caso vertente, é o da afirmação peremptória e provocatória, um jeito de contra-corrente que o fulano usa para nos ensinar a «verdade». A nós, plebe, gente cega e antiquada, porém perigosa e por isso mesmo merecedora da atenção que este arauto da sua própria infalibilidade nos presta. Foi o caso, que deu jogo de pingue-pongue na net e numa ou outra resposta do cronista (curiosamente nem parecia o mesmo que, nas páginas de um jornal que, vá lá saber-se porquê, paga a quem diz, de cátedra, as baboseiras que julga cheias de graça), do que o homem escreveu e re-escreveu maldizendo as canções de Adriano Correia de Oliveira, há uns tempos. É agora o caso recente do que disse, subscrevendo um seu apaniguado, sobre José Afonso.

Os 25 anos passados sobre a morte do Zeca, nome escrito sem as aspas com que Alberto Gonçalves, o convencido fulano a quem me refiro, dito sociólogo e «jornalista» (com as aspas com que adorno o epíteto) o cerca, mereceram uma recordação reforçada da obra e do homem que Zeca Afonso foi. Com espectáculos, com uma homenagem recordada na televisão, com artigos nos jornais e exposições. Porque, embora isso provoque uma azia incómoda ao sumo pontífice da religião da extrema direita «jornalística», houve e há gente com ouvidos para ouvir e cabeça para pensar. E não são tão poucos como isso. Aliás, se fossem, o sr. Gonçalves não se incomodaria com o Zeca ou com o Adriano. O sr. Gonçalves, dito sociólogo, incomoda-se. E muito.

Lendo o artigo em que ataca José Afonso, com um cúmplice do seu ódio a essa coisa repugnante que, para si (para eles) é o povo, percebe-se, por exemplo, que os sindicatos são um alvo a abater ou que Ernesto Che Guevara foi, para si, uma anedota de mau gosto. Anda tudo ligado, já se sabe. Quem detesta sindicatos e fica com brotoeja só de ouvir pronunciar o nome do Che não pode gostar do Zeca ou do Adriano.

Numa caixa inserida no seu artigo (de página inteira. A importância que se dá à parvoíce nesciente!), lê-se, com o título «A “liberdade” dele», o seguinte: «No blogue Forte Apache, Eurico de Barros, jornalista do DN, escreveu o essencial sobre o cidadão José Afonso nos 25 anos após a sua morte: «um defensor da revolução armada, da ditadura do proletariado e dos princípios perigosamente lunáticos da esquerda mais radical, glorificando a acção política violenta em várias das suas canções, nas quais propunha, por exemplo, “atirar aos fascistas de rajada”». Que estas irrefutáveis evidências ainda sejam capazes de levantar polémica, só mostra o nosso atraso em matéria de liberdade, a verdadeira, não aquela com que o popular “

É um bom exemplo de quem não soube (nem nunca saberá...) ouvir. Mas não só. É, também, um exemplo de quem tem memória curta ou, não a tendo, passa, sem remorsos, uma esponja vergonhosa sobre o tempo em que a maior parte das canções de Zeca Afonso foram compostas e escritas. Lembram-se que eram tempos difíceis? Ignóbeis? De opróbio? De assassínio? De censura? De guerra no «ultramar»? Ou os vossos papás esqueceram-se de vos contar? Levar à letra «atirar aos fascistas de rajada» é como interpretar, como se lê em «Os meninos nazis» (desculpem a escolha do poema...) «se o Adolfo pudesse (…) mandava-os a todos (…) combater os sarracenos», como se o Zeca, por erro de mal formação histórica, estivesse a dizer que Hitler tinha como objectivo principal combater, em França, na Polónia, na Inglaterra, na Rússia e por essa Europa fora, o... Islão!

Quanto aos «princípios perigosamente lunáticos da esquerda radical» talvez seja de lembrar que cantar «o povo é quem mais ordena» é falar de democracia, mesmo se apenas quiserem traduzir a etimologia da palavra. A democracia é «perigosamente lunática»? Dizer «em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade» é chato? Para quem? E será que esse desejo é o sonho da «“liberdade” dele» ou, simplesmente, sonho da Liberdade?

E denunciar o assassínio de Dias Coelho em «A Morte Saiu à Rua» causa-vos engulhos? Foi a PIDE, senhores, essa mesma polícia torturadora, impiedosa e assassina contra a qual o Zeca atirou, «de rajada», as palavras que eram sua arma.

E cantar (belíssimamente, desculpem que vos diga...) «Dorme meu menino a estrela d'alva / já a procurei e não a vi / se ela não vier de madrugada / outra que eu souber será p'ra ti» é obra de um homem «perigoso»?

E ouvir, do Ti Alves a resposta à pergunta «são poucas ou muitas»: «são poucas mê menino, mas pró ano já são mais muitas» é obra de um lunático ou de quem escreve, por entre linhas, a esperança de um futuro melhor?

Acontece que, se esses senhores, tão afobados com tais preocupações de repôr a «verdade» das coisas no seu, deles, lugar, escrevessem no que devem chamar tempo do «antigo regime», em vez de lhe chamarem fascismo (designação inverdadeira, por certo...) escreveriam, seguramente, com o desafogo e despreocupação com que o fazem agora. Porque escrevem defendendo posições que qualquer escriba salazarista defenderia. Porém, quem, nesse tempo, não escrevia, ou cantava, segundo a voz do dono, escrevia, ou cantava, direito por linhas tortas. Quem será o dono das vozes do sr. Gonçalves e parceiro de barricada? Ninguém, dirão. Pensamos pela nossa própria cabeça!, exclamarão. Serão então as ideias, os ideais, que os comandam. Seja. Mas sabemos nós, os que sabemos ouvir – e não só cantigas, que o sofrimento das gentes deste país, nos dias que correm, é audível – que essas ideias e esses ideais são, esses sim, perigosos. Não concordam? Quer-me parecer que sei porquê...

Uma palavra ainda sobre a acção política violenta. O 25 de Abril foi uma acção política violenta. Não foi feita aos tiros, não houve sangue derramado pelas ruas, mas sem os militares armados (claro que com o apoio popular) invadindo as ruas e ocupando os lugares-chave onde habitava o poder, exigindo, de armas na mão, o fim da ditadura, o poder fascista (desculpem o palavrão...) não teria caído. Não será esta uma «verdade irrefutável»?

Quanto ao «nosso atraso em matéria de liberdade» estamos conversados. Se há gente a escrever aleivosias nos jornais, assinadas, a nossa liberdade não está atrasada. Pena é que seja aproveitada para engrossar uma campanha contra valores que passam, inclusivamente, pela luta de muitos pela liberdade que outros, afinal, combatem, denegrindo quem por ela lutou.

Mas há, apesar da liberdade vigente, quem lhe sinta a falta. Por medo de perder o emprego (e quem se arrisca a perder esse bem raro?), por não se sentir livre quem atinge o limiar da pobreza ou já ultrapassou esse limiar, quem vê ameaçado a seu direito à habitação e, infelizmente, estes são apenas alguns exemplos. Porém, quem usa a liberdade para lhe apontar fraquezas atacando quem fez das fraquezas forças para a conquistar, se não se sente livre, temos pena. Ainda não percebeu nada!



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