Os isentos
Nesta quadra do Natal, antes, durante e depois, a televisão encheu-nos olhos e ouvidos com notícias tristes de dois tipos, digamos assim. Isto para além das tristezas de carácter permanente, não relacionadas directamente com qualquer tempo por tradição dito festivo. As mais numerosas dessas tais notícias tristes informavam-nos das muitas iniciativas havidas para minorar, pelo menos por algumas horas e talvez até só por uma noite, a desgraçada condição de muitos cidadãos atirados para a condição de pedintes supostamente por efeito da crise, que tem as costas largas. Convém notar que essas notícias não são igualmente pungentes para todos: há quem, ao conhecê-las, se sinta tocado por um certo sentimento de alegria, não apenas porque lhe parece reconfortante que afinal haja quem se aplique a praticar o bem pelo menos uma vez em cada ano, numa espécie de versão de Inverno da desobriga pascal, mas também porque para muitas almas caritativas é um regalo que haja pobres e carenciados, pois sem eles não seria tão fácil passar do mero bom coração à prática de comovedoras generosidades. Outro género de tristes notícias, ainda que mais soft, consistiu nas breves declarações de pequenos comerciantes queixando-se de que este ano as chamadas vendas de Natal haviam caído para níveis que de tão baixinhos ameaçavam a própria possibilidade de manterem abertas as portas dos seus estabelecimentos. Adivinhava-se, pelo menos num ou noutro caso, que o próprio comerciante poderá tornar-se, por altura do próximo Natal, ele mesmo utente da refeição quente servida por mãos generosas, e é claro que essa perspectiva quadrava mal com as doces melodias natalícias que a televisão continuava a infiltrar em nossas casas numa sugerida onda de paz e amor que a realidade não corroborava.
O outro lado da crise
Mas não se pense que a televisão não nos traz noticias que, por radicalmente diferentes, surgem como que o reverso destas informações deprimentes. É exactamente neste outro bem diverso tom que nos chegou uma admirável notícia, recolhida junto das actividades que se ocupam da comercialização da actividade turística: já muitos dias antes do dia de Natal propriamente dito estavam esgotados os destinos turísticos topo-de-gama, isto é, os que por um dia de permanência cobram mais do que o equivalente a um ano de salários mínimos portugueses. É certo que nem todos os usufrutuários desses dias presumivelmente paradisíacos serão cidadãos nacionais, mas o facto de ser portuguesa a fonte da informação e o contexto em que ela foi prestada apontavam para a certeza reconfortante de se tratar sobretudo de turistas portugueses. São, é certo, sujeitos e sujeitas minoritários no quadro nacional, mas isso não é novidade nenhuma: já Garrett o sabia quando escreveu acerca do número de pobres necessário para que haja um rico. Aliás, cabe recordar que estatísticas internacionais revelaram recentemente que os portugueses ricos estão cada vez mais longe dos portugueses pobres, o que se presume ser óptimo para evitar misturas. E o facto não contradiz minimamente a existência da famosíssima crise: é claro que a crise existe, mas é também claro que a mesmíssima crise consente a existência de isentos. Mais: muito frequentemente acontece que a própria crise reforça tais isenções em número e sobretudo em volume, sendo decerto por isso que muitas vezes se ouve dizer, na televisão e fora dela, que a crise é também geradora de oportunidades. É um tema cujo aprofundamento em reportagem de TV poderia ser empolgante, mas enquanto a reportagem não chega podemos aplicarmo-nos a adivinhar-lhe os contornos: abordaria empresas que podem agora recrutar mão-de-obra mais barata porque há por aí muita que está disponível, isto é, desempregada e inclinada a aceitar qualquer remuneração. De onde, por consequência e em contrapartida, o tendencial aumento do número de isentos e, quando de Natais ou equivalentes, lá estarão os locais topo-de-gama ainda mais recheados, afinal graças à crise. Assim se compreende como é importante que todos aceitemos a crise e a suportemos pacificamente. Uns na fila das sopas quentes, outros em estâncias turísticas distantes e acolhedoras. Estes ao abrigo do seu estatuto de isentos que pode não ser justo, mas é muito saboroso.