O eufemismo
Há figuras, públicas ou não, que mal surgem nos ecrãs dos nossos televisores logo asseguram um momento interessante, quase sempre de boa disposição, o que é evidentemente precioso nos tempos sombrios que vão correndo. É o caso, felizmente, do nosso Presidente da República. Foi neste quadro que há ainda poucos dias, abordado creio que em plena rua por representantes do nacional jornalismo que por aí se vai desenvolvendo, o senhor Presidente, falando das crescentes dificuldades que afligem o bom povo e fazendo prova pública de que nada de relevante escapa à sua atenção, falou da existente «insuficiência alimentar» que já por aí campeia. É claro que se referia ao que o comum das gentes, por escassa delicadeza de expressão e sem qualquer apoio de assessoria em matéria de expressão verbal, chama «fome». E adequadamente, note-se; pois a fome não corresponde necessariamente à supressão total de qualquer espécie de alimento, nem sequer na trágica África negra onde milhares continuam a morrer de fome mesmo tentando sobreviver alimentando-se de raízes secas sem valor nutritivo. Por desgraça, fome é o que já ocorre em Portugal sob tectos que cobrem velhos com pensões mínimas que se esgotam nos primeiros dias do mês, em lares de casais desempregados que preferem passar fome para que não a passem os filhos, noutros lugares onde acontecem situações equivalentes. Contudo, compreende-se lindamente que o senhor Presidente não tenha querido usar palavra tão crua, não só para não ferir sensibilidades frágeis mas também, e talvez principalmente, por saber que também lhe cabem algumas responsabilidades no estado a que se chegou. Quem sabe (saberá ele próprio, decerto, graças à sua já quase lendária competência, mas deixe-se passar a expressão interrogativa, simples maneira de dizer), quem sabe se por aí não haveria menos fome se não tivesse havido um tempo em que se aceitou a destruição da agricultura portuguesa em troca de uns patacos depois sumidos nem se sabe bem onde?
A virtude da clareza
Temos, pois, que o senhor Presidente recorreu a um eufemismo, isto é, a uma forma suavizante do conteúdo que se pretende exprimir, e que esta sua opção é totalmente compreensível. Aliás, é de crer que nisto da expressão verbal, seus arredores e correlativos, o senhor Presidente está muito bem assessorado, o que aliás já foi evidenciado perante as câmaras numa ocasião em que, tendo esbarrado com escassez de adequadas palavras para responder a uma pergunta, logo a solução lhe surgiu mesmo ali ao lado, e ainda bem. Mas passemos, pois, para retomarmos o assunto inicial. Por exemplo, para tentarmos adivinhar se o uso de uma tão afortunada fórmula vai ser geralmente adoptado por gentes da governação quando no seu discurso se imporia o uso da palavra «fome», adequada mas demasiado dura e a convocar realidades que a estratégia política manda ocultar. Ou se, num outro plano e em hipótese altamente improvável mas afinal didáctica, virá o dia em que perante qualquer de nós surgirá a mão estendida de um mendigo e ouviremos palavras que falem de um cidadão que pede esmola porque, lá em casa (se ainda a tiver) há crianças «com insuficiência alimentar». É certo que esta eventualidade se tornou menos provável desde a noite em que perante as câmaras o senhor Presidente preconizou que aos mais desfavorecidos fossem entregues os restos de comida sobrantes de restaurantes. Ainda assim, podemos agora apercebermo-nos de que já então o senhor Presidente pensava na «insuficiência alimentar» que rondava muitos dos portugueses, que não se esquecia deles mesmo enquanto lhe era servido um repasto adequado no estabelecimento de seleccionada frequência de onde estava a sair, e é claro que todos seremos sensíveis a tais preocupações. Ainda assim, porém, e talvez porque as pessoas em geral e os portugueses em particular são exigentes, é de crer que muitos desejem que em certos momentos sejam abandonados eufemismos em favor da virtude da clareza. O que, quanto ao assunto em apreço, significa o claro reconhecimento de que, sim, há fome em Portugal, e que tudo está a ser decidido para que essa fome alastre como uma epidemia contra a qual não são tomadas as medidas necessárias. Tudo para que numa longínqua manhã de nevoeiro seja finalmente paga uma dívida. Contraída para proveito de uns quantos que nunca experimentaram «insuficiências alimentares».