- Nº 1964 (2011/07/21)

Os bons sentimentos

Argumentos

Que a memória de Vinicius de Morais me absolva da tentação de lhe seguir toscamente as palavras: os inteligentes que me perdoem, mas as raízes são fundamentais. É que, estando diante do televisor a ouvir um sujeito inegavelmente inteligente, julgo aperceber-me facilmente de que aquele seu discurso não seria o mesmo se as suas raízes pessoais, familiares, de classe, não mergulhassem em solo abundantemente enriquecido ao longo de muitos anos, provavelmente de várias gerações. Não sei se já aqui citei alguma vez um efémero estribilho promocional de uma estação de rádio, qualquer coisa como «-Você pensa aquilo que você ouve!». Era uma interessante e talvez involuntária denúncia da capacidade dos media para modelarem a generalidade da chamada opinião pública. Semelhantemente, poder-se-ia dizer assim: «-Você pensa o que a classe social a que pertence o induziu a pensar!» Ou talvez de um outro modo: «-Você pensa o que a sua declaração de rendimentos lhe permite pensar!» Isto com excepções, é claro, e felizmente não poucas. Mas da regra geral decorre uma certeza que convirá não esquecer: que a inteligência é uma boa coisa, uma bonita prenda, mas não constitui garantia de lucidez e de justeza. Não porque a estupidez seja uma melhor bússola nesta aventura de entender a vida e o mundo, mas sim porque há o tal factorzinho das raízes. Sociais, pois. Quanto à parvoeira no seu estado mais ou menos puro, parece que um escritor francês escreveu um dia que entre os estúpidos e os maus ele preferia os maus. E justificou: porque os maus às vezes descansam. Conto a estória, verdadeira ou não, pelo preço por que ma contaram, isto é, de graça mas sem garantia, e por aqui me fico, regressando ao fio inicial desta breve meada.

 

Uma visão paradisíaca

 

Estava, pois, o tal senhor inteligente a falar na televisão, estávamos nós a ouvir. Nós, isto é, boa parte dos milhões que são verdadeiramente o País real. E, apesar da inteligência, dizia ele o que afinal já é costume ouvir aos que não são inteligentes, aos que por vezes pelo som mais se assemelham aos papagaios que ao homo sapiens: que isto do défice das contas públicas é muito grave, que é preciso cortar nelas obviamente do lado da despesa pública, não buscando o equilíbrio pelo aumento das receitas. Ora, é preciso descascar esta fórmula para vermos o que está lá dentro, e a já longa experiência ensina-nos que o fundamental do seu miolo é o conselho para que não sejam incomodados com impostos os que mais facilmente os poderiam pagar e se opte por procurar o equilíbrio orçamental cortando despesas públicas. Quais? As mais fáceis, naturalmente, que são quase sempre as mais vultosas por beneficiarem o maior número e suprirem necessidades fundamentais. Por exemplo: as da área da Saúde, quando são tantos (embora nunca se divulgue quantos, nem mesmo por estimativa) os que já não compram medicamentos que os aliviem da dor ou façam recuar a ameaça do fim. Outras despesas a cortar: as havidas com o subsídio de desemprego e eventualmente outras «regalias» para as quais os trabalhadores descontaram em devido tempo. A contracção do subsídio de desemprego no tempo e no valor é especialmente cruel, mas o Governo e os sábios que o aplaudem não dão sinais de darem por isso: pelo contrário, sublinham que essa é uma boa maneira de «estimular» o trabalhador desempregado a procurar posto de trabalho, isto é, a aceitar trabalhar por qualquer preço, em qualquer lugar e em qualquer tarefa. É uma visão paradisíaca para o patronato de maus fígados, mas que ninguém fique triste, há uma grande compensação: estes dias difíceis estimulam os bons sentimentos dos caridosos. A começar, recorde-se, pelo órgão cardíaco do senhor Presidente, tocado, bem me lembro que à saída do Casino Estoril, pela iniciativa de distribuir pelos desfavorecidos as sobras dos restaurantes. Sejamos francos e deixemo-nos de preconceitos políticos: dá gosto ter um PR assim. Em verdade, este é o tempo dos bons corações, como também o tal senhor inteligente sublinhou. Ficou mesmo no ar a sugestão de que não é preciso mais nada. Ou, pelo menos, que as suas raízes não lhe consentem a visão de outros caminhos.

Correia da Fonseca