A curto prazo
As tabelas de audiências parecem ensinar-nos que para a maioria dos telespectadores as novelas são quase tudo e o resto quase nada. Grosso modo, entenda-se. Mas há excepções, aliás mais numerosas do que pode parecer, e acontece-me estar nelas. Não é por mal nem por dever de semi-ofício, é só por obstinação em acreditar que a TV pode servir para melhor uso, que nela ainda subsistem sinais da sua inicial e longamente contrariada vocação para nos ensinar o mundo e a vida. E foi no quadro dessa convicção que na passada segunda-feira acorri ao canal Odisseia, disponível por cabo, para assistir a um documentário acerca da chamada explosão demográfica, isto é, do cada vez mais inquietante desequilíbrio entre a população mundial e a capacidade do planeta para alimentar os crescentes milhares de milhões que o habitam. A preocupação que o caso suscita não é simpática para todos, mas paciência!, não andamos na vida para sermos simpáticos. Há, por um lado, a poderosa voz de Roma que quando ouve falar de controlo da natalidade logo se prepara para lembrar que o Céu lá está para providenciar no sentido de que a antiquíssima ordem de «crescei e multiplicai-vos!» não seja substituída pela pecaminosa fornicação inconsequente. Por outro lado, há não apenas a memória do maltusianismo clássico mas também a da sua utilização pelos países mais ricos como arma para a defesa de privilégios e manutenção de esquemas de sobreexploração dos mais pobres. Não obstante tudo isso, e decerto mais o que eu ignoro ou aqui não cabe, o certo é que alguns números incontroversos bastam para lançar em estado de alarme, e alarme aliás superlativamente necessário, quem os conheça. É que a população mundial, que se estima ter sido de trezentos milhões de criaturas por alturas do nascimento de Jesus nas palhinhas de Belém, cresceu devagarinho até finais do século XIX, isto é, ao longo de dezanove séculos, para o primeiro milhar de milhões, pulou para seis mil milhões por altura do ano 2000 e calcula-se que atinja os nove mil milhões daqui a quarenta anos. Paralelamente, e não obstante os progressos tecnológicos havidos na área da produção de alimentos, os êxitos obtidos neste sector estão longe de sequer se avizinharem da dimensão do crescimento populacional. Foi deste desequilíbrio que nos falou o documentário transmitido pela Odisseia, produção da BBC datada de 2009 com a assinatura de David Attenborough, que não é uma assinatura qualquer. E também de uma outra ameaça não menos terrível, que é a carência de água potável já premente em várias regiões do mundo de tal modo que bem pode vir a ser causa de futuros conflitos bélicos, como se não os houvesse já em quantidade bastante para acorrer à avidez das indústrias armamentistas.
A escolha
Como bem se compreende, os dados do problema, tal como sumariamente foram expostos por Attenborough, são suficientes para comporem uma perspectiva apocalíptica. Mas também aqui a voragem capitalista intervém para ainda agravar as coisas, e o documentário denunciou a prática de empresas que adquirem vastas áreas de terrenos férteis em países pobres para aí produzirem, a baixo preço, bens alimentares que depois são exportados para os países onde tais empresas se sediam. Não se trata, é claro, de acções determinantes para o evoluir da situação, mas são esclarecedoras da incompatibilidade entre a prática da libérrima iniciativa privada e o interesse vital da espécie humana. Na verdade, o crescente desequilíbrio entre a população mundial em crescimento acelerado e as dificuldades de ordem vária que a produção alimentar encontra, com destaque para criminosas operações de especulação com dimensões gigantescas, aponta para a necessidade absoluta de uma total coordenação de políticas e de esforços à escala planetária. E dessa necessidade que se mostra evidente logo que a questão é encarada com olhos de ver e mínima probidade intelectual decorre uma certeza: a de que essa coordenação, de que depende a um afinal já curto prazo a própria sobrevivência da espécie humana, é rigorosamente incompatível com a hegemonia mundial do capitalismo e, pelo contrário, exige uma cooperação global que só um verdadeiro socialismo, patamar de passagem para o comunismo, pode permitir. É, sem dúvida, uma condição exigente. Mas é uma exigência que directamente tem a ver com a escolha entre a vida e a morte. Não para nós, agora, mas sim para os netos dispersos pelo mundo inteiro.