Os brevíssimos minutos

Correia da Fonseca

Foi, no passado dia 21, o Dia Mundial da Floresta, talvez por arrastamento o Dia da Árvore, o Dia Mundial da Poesia e porventura o Dia de mais coisas importantes que merecem a consagração de pelo menos um dia em cada ano, um pouco como a limpeza das almas decorrente da desobriga anual recomendada pela Santa Madre. Podia também ser o Dia de João Sebastião Bach, nascido a 21 de Março, mas não notei que a RTP fosse sensível a essa efeméride, o que aliás não espanta porque desde sempre ela se mostrou um pouco surda à boa música em geral e à música dita clássica em especial. Quanto à poesia, porém, desta vez mostrou-se sensível graças a uma ideia de Paula Moura Pinheiro em colaboração com José Carlos de Vasconcelos, daí resultando a inauguração de um minúsculo programa de cerca de três minutos que será transmitido por duas vezes em cada dia útil e, espera-se, ao longo de vários meses. E na RTP2, naturalmente, isto é, em local e horas onde passa pouca gente, o que bem se compreende porque aquilo não é um bloco publicitário na sôfrega procura de audiências, mais parece ser resposta a uma espécie de remorso, ou talvez antes de escândalo, por a poesia, área onde os portugueses até têm a reputação de serem fortes, estar desde há muito escorraçada de qualquer dos canais da operadora estatal de televisão. O programa intitula-se «Um poema por semana», repetirá o mesmo poema ao longo dos tais cinco dias úteis, e durante o fim-de-semana não haverá poesia, presumivelmente porque a tolerância da RTP não é de ferro e por lá haverá quem entenda que cinco dias vezes três minutos vezes dois já resulta num produto final que é excessivo para os telespectadores portugueses há muito desabituados a ouvirem as palavras dos poetas. Anote-se, de passagem, que este evidente fastio da estação pública em relação à poesia é especialmente curioso num País onde o Dia Nacional é exactamente o dia em que se celebra a memória de um poeta. Bem se sabe que se Luís de Camões vivesse hoje nem sequer lhe seria atribuída a tença supostamente magra que el-rei D. Sebastião lhe concedeu e que, se não conseguisse um trabalho obviamente precário num empresa de publicidade, haveria de morrer em miséria porventura ainda mais funda que aquela que sofreu nos seus últimos anos. Mas esta sabença não obriga a que suportemos com resignação mais esta vertente do óbvio desprezo da RTP pelos valores culturais porque também a nossa paciência não é de ferro nem tem a obrigação de o ser, nesta como em todas as outras matérias.

 

Um efeito de denúncia

 

Não me parece que a intenção de Paula Moura Pinheiro ao inventar este programinha tenha sido o de lembrar que a RTP, onde aliás exerce funções de direcção, tem faltado obstinadamente ao dever de pôr os telespectadores portugueses em contacto com a poesia, pelo menos com a poesia portuguesa, isto é, com um dos mais notáveis patrimónios nacionais na área da cultura. Parece claro, porém, que a exiguidade do «Um poema por semana» pode ter também esse resultado. Aliás, é sabido que, curiosamente, a RTP não teve em certos momentos do seu passado o mesmo comportamento, o que é quase desconcertante e pode induzir alguns a formularem hipóteses desvairadas. Um dia, numa boutade que alguma memória arquivou, Natália Correia disse que «a poesia é para comer». Será que a RTP, dado o duvidoso índice cultural de alguns dos seus dirigentes, tomou à letra a metáfora e tem andado à espera de que a ementa poética surja em algum dos programas de culinária com que nos tem abastecido os televisores? É improvável, mas não é impossível: em matéria de hostilidade à cultura já está demonstrado que nada é impossível na RTP. É claro que a responsabilidade disso não pode ser imputada a Paula Moura Pinheiro que fará decerto o que pode, sendo que pode muito pouco. Direi mesmo, parafraseando o que ainda antes de 74 David Mourão-Ferreira disse um dia acerca da programação cultural da RTP de então, que Paula Moura Pinheiro «é uma ilha rodeada de um mar de ácido sulfúrico por todos os lados». Mas esta sua suposta inocentação não elimina os factos, e é um facto que «Um poema por semana» se arrisca a ser sobretudo um efeito de denúncia da RTP pelo efectivo boicote que tem feito à poesia. Porventura valendo mais por isso do que por qualquer outro mérito.



Mais artigos de: Argumentos

A dura luta de classes

Quem ler ou ouvir as notícias do dia ficará certamente seguro de que a vida em Portugal está a entrar em fase de agudíssima conflitualidade política e social. Agora, tudo se precipita, de roldão. Aos pobres, o poder capitalista exige cada vez mais sacrifícios, com o...

Engels a August Bebel (em Berlim)

  Londres, 24 de Janeiro de 1893 […] Estou desejoso de [ter] o estenograma do discurso sobre a Bolsa de Singer (1), foi excelente de ler o que [saiu] no Vorwärts (2). Há, porém, quanto a este tema, um ponto que toda a gente facilmente negligencia: a Bolsa é um instituto onde os...

«Subalternos»

«O CDS não é subalterno de ninguém!», proclamava Paulo Portas do alto do seu congresso, que no passado fim-de-semana lhe confirmou, em Viseu, a «liderança incontestada». O recado era para o PSD, a quem também fez saber que o partido de Passos Coelho «teria...