«Ler e depois»
O título deste texto, talvez crónica, propositadamente grafado entre aspas para evitar eventuais suspeitas de desavergonhado plágio, é pilhado a uma das muitas obras de Óscar Lopes, intelectual comunista que é uma das figuras de topo da crítica e do ensaísmo literários no Portugal contemporâneo. Sirva o feio acto da pilhagem como homenagem obviamente modesta ao mestre, mas a tentação foi irresistível. E não por acaso: é que a TVI transmitiu há dias uma breve reportagem acerca da obstinada persistência do analfabetismo no nosso País, espécie de grave doença endémica que resiste à extinção, que coexiste agora com o que se supõe ser «a modernidade», e que tem consequências, um pouco como aquelas moléstias que deixam rasto, como diz o povo. Por isso, como se compreenderá, bem se justificava a reportagem da TVI até como alarme e tácita reclamação de providências, pois que a sabença da leitura abre portas ao entendimento de muitas e variadas coisas, como é sabido, e está no oposto do interesse nacional que tais portas permaneçam fechadas a uma percentagem insuportavelmente elevada dos portugueses. Para mais, como a reportagem referiu, o analfabetismo luso não atinge apenas os velhos, o que a acontecer permitiria supor que haveria de se extinguir em resultado da ordem natural das coisas, mas também adultos e mesmo adolescentes. A sua erradicação é, pois, um combate a travar e um objectivo que se diria consensual se não se soubesse haver os que preferem o povo analfabeto, e por isso tendencialmente mais vulnerável a prédicas vindas de certos púlpitos. Isto não significa, porém, que não saber ler equivalha a não saber pensar e a não perceber o essencial do mundo e da vida. Caberia aqui citar o inesquecível Discurso de Estocolmo de José Saramago e a referência nele contida ao avô analfabeto e contudo sábio, mas não é preciso ir tão longe e tão alto, pois todos sabemos que o entendimento das coisas, designadamente das que mais ferem e marcam o quotidiano de milhares, dispensa a decifração das letras, de tal modo são agrestes. Porém, acontece que a leitura pode acrescentar territórios vastos a essa compreensão inicial, e a conquista deles, tão pouco estimulada pela televisão portuguesa, e mais concretamente pela RTP que ainda há dias se gabava de «cinquenta e quatro anos de serviço público», é uma tarefa cujo atraso tem responsáveis.
A prevenção de João Abel
Contudo, o mais destacado acontecimento televisivo da semana passada foi bem outro: foi o Festival RTP da Canção, não em rigor pelo seu mérito próprio, mas sim pela irrupção (ou talvez erupção) no certame de uma cantiga de perfil marcadamente político, complementada por um apelo directo à participação na manifestação anunciada para o próximo dia 12. Foi um choque. Desde há muitos, muitos anos, que estava o Festival posto em sossego, como a linda Inês camoniana, entretido a colher o «doce fruito» da mediocridade inofensiva, «naquele engano de alma ledo e cego» que, como agora se viu, «a Fortuna não deixa durar muito», quando no palco do Teatro Camões surgiram Os Homens da Luta e arrebataram a vitória graças a uma votação telefónica que bateu o veredicto resultante dos votos do Júri Nacional, este constituído em princípio por elementos técnica e culturalmente habilitados. Em boa verdade, não me parece que a cantiga vencedora, «A Luta é Alegria», seja uma canção muito bela, longe disso, mas, tal como em tempo de guerra não se limpam armas, será aceitável que em tempo de crispações sociais se dispense alguma qualidade estética, embora sempre seja desejável que ela não falte. Porém, o mais importante de tudo não será talvez a canção mas sim o apelo, directamente lançado do palco do Teatro Camões para o País inteiro, em favor da participação na manifestação. A questão é não se saber ao certo de onde é que ela, a manifestação, arranca e para onde é que vai, circunstância que não implica um pré-juízo condenatório mas explica cautelas. Encaro as notícias e os estímulos que estão a precedê-la e lembro-me de um poster de João Abel Manta desenhado nos tempos imediatamente posteriores ao 25 de Abril. Tinha uma figura representativa do Partido Socialista, então muito revolucionário, e uma legenda: «Cuidado com os penduras!». Decerto que não é preciso explicar por que me acode agora à memória a prevenção de João Abel Manta, tão justificada pelos tempos que imediatamente se lhe seguiram.