Os portugueses vivem acima das suas possibilidades

Uma mentira que importa desmontar

Anselmo Dias

Para os devidos efeitos demagógicos está dito e (re)dito: «os portugueses vivem acima das suas possibilidades».

Embora tal formulação não tenha sido publicada em nenhuma série do Diário da República nem tenha passado pelo circuito institucional de uma qualquer promulgação, a verdade dos factos é que ela aí está omnipresente nas televisões e nos jornais.

Eles são governantes, patrões, professores universitários, economistas, jornalistas, comentadores, enfim, uma tropa fandanga a repetir à exaustão o estribilho: «os portugueses vivem acima das suas possibilidades», «os portugueses vivem acima das suas possibilidades», «os portugueses vivem acima das suas possibilidades».

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Este estribilho é de tal forma recorrente que faz lembrar a teoria dos reflexos condicionados dos cães de Pavlov.

No caso em apreço não há cães a salivar em resposta comportamental ao tilintar das campainhas, conforme a experiência daquele cientista. O que há é gente a bolsar disparates sempre que a propósito de tudo e de nada vem a terreiro o défice orçamental, a dívida pública e a dívida externa, entre outros temas afins.

Os reflexos condicionados das vozes do dono são, sem dúvida, similares aos reflexos condicionados dos cães de Pavlov: apenas os diferencia uma escala de valores. No primeiro caso era a comida que estava em jogo, no segundo caso é o lucro dos mandantes das vozes do dono que interessa.

É em nome da ganância e do lucro, associadas, uma e outra, à mentira, que a lengalenga «os portugueses vivem acima das suas possibilidades» é repetida à exaustão.

Como é que eles, os capitalistas e as vozes do dono, a fundamentam?

Da seguinte forma, tomando com referência o ano de 2009: (1)

Vão ver qual o valor das importações, cerca de 51 mil milhões de euros.

Vão ver qual o valor das exportações, cerca de 32 mil milhões de euros.

Estabelecem a diferença, cerca de 19 mil milhões de euros.

Dividem esse valor pelo PIB, encontram um valor e concluem: «os portugueses vivem acima das suas possibilidades em 10%».

Está, pois, decretado: vivemos acima das nossas possibilidades em cerca de 10%.

Mas eles não dizem como nós vivemos.

Não falam do que comemos, como nos vestimos, quais as condições de habitabilidade das nossas casas, como nos movimentamos e tudo o mais que diz respeito à rotina do nosso dia-a-dia.

Eles não falam do que gostaríamos de ter e de ser.

Eles não referem que somos o país com as maiores desigualdades sociais, expressas, a título de exemplo, no facto de os rendimentos declarados em sede de IRS (2) atingirem uma diferença superior a 40 mil milhões de euros entre os rendimentos dos 20% com rendimentos mais elevados, comparativamente aos 20% com rendimentos mais baixos.

Nada disso.

O que eles dizem é que importamos (X) e exportamos (Y), omitindo a sua responsabilidade na desindustrialização, no abandono da agricultura, no abate da frota pesqueira e na introdução de um modelo de desenvolvimento não só em contradição com o nosso normativo constitucional como, ele próprio, responsável pela sub-produção, quer na vertente qualitativa quer quantitativa.

A teoria de que «os portugueses vivem acima das suas possibilidades» é, pois, uma mentira que importa desmontar.

Para o efeito, há inúmeros factores que poderíamos invocar, desde o factor principal que explica a natureza e a dimensão da exploração, ou seja, o conceito de mais-valia, passando por outros tais como: o processo de acumulação capitalista, a distribuição da riqueza, a política de rendimentos e a questão salarial.

De todos estes factores abordemos, apenas, este último, na óptica dos sectores e das regiões.

E porquê? Porque, no plano imediato, é aquele sobre o qual incidem as medidas do Governo no sentido de pôr os portugueses a viver de acordo com as suas possibilidades, ou seja: reduzir o factor trabalho em 10% para que o factor capital possa, ainda mais, acrescentar acumulação há acumulação já existente.

 

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A questão salarial

 

Sobre este tema consultámos duas estatísticas: os últimos dados constantes dos Quadros de Pessoal e os últimos dados disponíveis do INE.

Dado que a primeira estatística permite uma maior desagregação de dados é sobre essa que nos iremos centrar, embora a mesma seja limitada a um universo de 3 018 395 de trabalhadores por conta de outrem, o que, naturalmente, exclui uma parte significativa da função pública (3) e um número não quantificado de trabalhadores em empresas, provavelmente micro e muito pequenas empresas, que não enviaram os respectivos Quadros de Pessoal ao Ministério do Trabalho.

Colocadas estas questões pergunta-se: qual o valor médio da retribuição dos trabalhadores por conta de outrem do sector privado da economia?

O valor médio ilíquido, sujeito a impostos, é o seguinte:

- 843,20 euros relativo à remuneração base;

- 1008,00 euros relativo ao ganho médio.

O nosso estudo vai incidir sobre o ganho médio, o qual resulta da soma da remuneração base, acrescida das diuturnidades, subsídios, etc. Trata-se de um valor superior à remuneração base em cerca de 19,5% mas que importa ter em conta por forma a que não nos venham dizer que estamos a sonegar informação, mesmo sabendo que há muitos trabalhadores que apenas, e só, recebem a remuneração base sem qualquer outro adicional.

Quando referimos uma média de 1008 euros de ganho médio ilíquido dizemos, simultaneamente: atenção! Atenção, porquê? Porque aquele valor é um valor virtual. Embora matematicamente esteja correcto ele não tem valor social, porque, na prática, não existe. E, a existir, envolveria um número de trabalhadores meramente residual.

O que existe, isso sim, é um número bastante elevado de trabalhadores com médias bastante inferiores e um número muito mais reduzido de trabalhadores com ganhos médios muito superiores. É desta relação entre muitos trabalhadores retribuídos abaixo da média e uns poucos acima da média que, matematicamente, se diz que o ganho médio ilíquido mensal é de 1008 euros.

Vejamos, então, como se constrói esta média.

Vejamos, em primeiro lugar os 10 sectores com a retribuição ilíquida mais baixa, abrangendo cerca de

1 500 000 trabalhadores por conta de outrem:


- Indústria dos sectores têxtil, vestuário e calçado: 644 euros;

- Indústria de mobiliário: 671 euros;

- Alojamento e restauração: 685 euros;

- Agricultura: 691 euros;

- Apoio social: 718 euros;

- Comércio a retalho: 800 euros;

- Outras actividades de serviços: 832 euros;

- Indústria da madeira e da cortiça: 836 euros;

- Construção civil e obras públicas: 870 euros;

- Indústria alimentar e das bebidas não alcoólicas: 894 euros.


Insistimos que estamos a falar de retribuição que engloba a remuneração base acrescida de subsídios, todos eles sujeitos a impostos.

Vejamos agora os 10 sectores com a retribuição ilíquida mais elevada:


- Telecomunicações: 2244 euros;

- Sector financeiro (bancos e seguros): 2224 euros;

- Electricidade: 2191 euros;

- Informação e comunicação: 1885 euros;

- Consultoria e informática: 1806 euros;

- Indústria farmacêutica: 1789 euros;

- Produtos petrolíferos refinados: 1751 euros;

- Actividades de edição, cinematográfica, vídeo, etc.: 1727 euros;

- Actividades artísticas: 1448 euros;

- Correios: 1439 euros.

Estes sectores envolvem cerca de 284 000 trabalhadores por conta de outrem.

A explicação para a média ilíquida de 1008 euros tem pois como balizas determinantes os extremos atrás referidos, o que explica a seguinte assimetria nos rendimentos do trabalho:

 - cerca de 66% dos trabalhadores por conta de outrem, incluindo a função pública, têm um rendimento bruto mensal inferior a 900 euros, ou seja, dois em cada três trabalhadores;

- cerca de 37% dos trabalhadores por conta de outrem, incluindo a função pública, têm um rendimento bruto mensal inferior a 600 euros.

Estes dados, já de si bastante modestos, ainda se tornam mais cruéis à medida em que os vamos desagregando.

Assim:

Primeiro exemplo:

Quando atrás dissemos que o ganho médio mensal ilíquido das indústrias dos têxteis, do vestuário e do calçado orçava os 644 euros não dissemos que abaixo dessa média estava a generalidade dos trabalhadores a laborar em pequenas empresas. Com efeito, a média nas empresas com menos de cinco trabalhadores é de 552 euros.

Segundo exemplo:

Quando atrás dissemos que o ganho mensal ilíquido das indústrias da madeira e da cortiça orçava os 836 euros não dissemos que abaixo dessa média estava a generalidade dos trabalhadores classificados como estagiários, praticantes e aprendizes. Com efeito, a média dessas profissões era de 543 euros.

Terceiro exemplo:

Quando atrás dissemos que o ganho mensal ilíquido das indústrias alimentares e das bebidas orçava os 894 euros, não dissemos que abaixo dessa média estava a generalidade dos trabalhadores inseridos nas empresas com menos de um ano de actividade. Com efeito, a média desses trabalhadores era de 674 euros.

Quarto exemplo:

Quando atrás dissemos que o ganho mensal ilíquido das indústrias do mobiliário orçava os 671 euros, não dissemos que abaixo dessa média estava a generalidade dos trabalhadores com um grau académico inferior ao 1.º ciclo do ensino básico. Com efeito, a média desses trabalhadores era de 568 euros.

 

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Tudo isto para concluir o seguinte:

1.º A dimensão da empresa, a função do trabalhador, a antiguidade (quer da empresa, quer do trabalhador), bem como o grau académico influenciam as médias.

Acrescentemos a tudo isto a diferença para menos de 21,6% entre o ganho médio das mulheres comparativamente aos homens.

2.º É preciso ter cuidado com as médias.

É preciso desagregá-las ao máximo porque só assim podemos ter uma noção mais correcta dos valores modestos dos salários dos trabalhadores e, desse modo, podermos, junto da opinião pública, desmontar a mentira mil vezes repetida de que «os portugueses vivem acima das suas possibilidades».

3.º Tudo o que foi referido tem um efeito devastador a nível distrital e concelhio.

Quanto a este último aspecto, vejamos o capítulo seguinte.

 

As assimetrias regionais

 

Da natureza do tecido empresarial conjugada com os factores atrás referidos resulta uma profunda assimetria no valor do ganho médio ilíquido, em termos distritais e, sobretudo, de uma forma muito mais gravosa, a nível concelhio.

No plano distrital é possível estabelecer cinco grupos tendo como base as respectivas médias.

Assim:

1.º grupo: Lisboa e Setúbal. Trata-se dos únicos distritos com valores superiores à média nacional;

2.º grupo: Porto, com uma média de 950 euros;

3.º grupo: Aveiro, Coimbra, Leiria, Santarém e Faro, com valores entre os 870 e 890 euros;

4.º grupo: Portalegre, Évora e Beja, com valores entre os 840 e 870 euros;

5.º grupo: Viana do Castelo, Braga, Vila Real, Bragança, Guarda, Viseu e Castelo Branco, com valores inferiores a 800 euros.

Estas diferenças tornam-se ainda mais evidentes quando a análise é feita na base concelhia.

Com efeito, dos 278 concelhos do continente (as estatísticas das Regiões Autónomas estão desfasadas um ano) apenas 23 eram abrangidos com médias globais superiores a 1008 euros ilíquidos, o que significa que 92% (noventa e dois por cento!!!) dos concelhos portugueses estão abaixo da média. Um verdadeiro crime de lesa coesão nacional.

 

A exigência de um outro modelo de desenvolvimento

 

O caso de Paços de Ferreira é exemplar. Trata-se do concelho do distrito do Porto com os mais baixos salários, ocupando, neste âmbito, um dos últimos lugares no conjunto dos 278 concelhos do continente.

Não foi por acaso que a multinacional IKEA o escolheu para aí instalar uma das suas fábricas, acontecimento aproveitado hipocritamente por José Sócrates para salientar a enorme confiança do capital estrangeiro nas potencialidades do nosso país.

Pudera! Um concelho onde, no sector secundário, a remuneração base, acrescida de diuturnidades, subsídios e trabalho extraordinário corresponde a 625 euros e 556 euros, respectivamente para homens e para mulheres. Com tais salários de miséria não é de estanhar a ganância das multinacionais e do patronato português pela localização dos seus investimentos, quer industriais quer no âmbito dos serviços.

Quando falamos de um outro modelo de desenvolvimento também é disto que falamos.

Falamos da exigência de uma outra política salarial que reverta para o factor trabalho a maior parte da riqueza criada.

Falamos de indústrias com maior incorporação de média e alta tecnologia.

Falamos, igualmente, de uma localização mais racional de todo o tecido produtivo por forma a evitar clivagens no território português, com consequências gravíssimas não só nos salários, não só nas reformas, mas também no próprio índice de poder de compra de toda a população.

Falamos, por exemplo, do facto de 87% dos concelhos com médias inferiores a 700 euros estarem localizados a Norte do rio Tejo, fruto da forma assimétrica como são feitos os investimentos e a prioridade dada a sectores onde são praticados baixíssimos salários.

O PCP tem, a este propósito, uma proposta que consiste numa ruptura democrática contra as políticas que levaram o País ao actual estado de coisas.

O povo português tem, a par desse desígnio, patriótico e de esquerda, uma imediata exigência a fazer e que é a seguinte: o cumprimento do Artigo 81.º da Constituição que, expressamente, refere:

«Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social:

d) Promover a coesão económica e social de todo o território nacional, orientando o desenvolvimento no sentido de um crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões e eliminando progressivamente as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo, e entre o litoral e o interior.»

A norma atrás referida está em vigor e faz parte do normativo Constitucional, ou seja, emana da lei mais importante do país.

Num Estado de Direito as leis devem ser cumpridas. Contudo, a nossa Constituição é letra morta para o Presidente da República, para o Governo, para a maioria parlamentar da Assembleia da República. Tal incumprimento é o responsável, não apenas pelo processo de desfiguramento da concepção do Estado, tal como a Constituição o consagra, como pelo consequente empobrecimento do regime democrático.

Combater tal prática está, como sempre esteve e estará, na ordem do dia.

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Fonte: Resolução Política do XVIII Congresso do PCP;

Notas:

(1) Estes dados referem-se a bens, ficando de fora os serviços;

(2) Estes dados referem-se às declarações de rendimentos em sede de IRS;

(3) O INE estima, relativamente ao 3.º trimestre de 2010, a existência de 3 836 200 trabalhadores por conta de outrem.