Margens de lucro e mercado social (VI)

Jorge Messias

Da es­tag­nação passou-se ful­mi­nan­te­mente a su­ces­sivas fases de ace­le­ração da acção. O que agora é, dentro de uma hora talvez já não seja. Mas há sempre um fio con­dutor in­dis­far­çável que liga o pas­sado ao pre­sente para de­pois su­gerir o fu­turo. É uma lei na­tural que não é pos­sível es­ca­mo­tear. Não há efeito sem causa.

O eterno re­torno da «questão re­li­giosa» – que por ra­zões his­tó­ricas per­ma­nece viva e ac­tual – con­vida a que cha­memos no­va­mente à baila o gra­vís­simo pro­blema so­cial da po­breza, da sua ca­rac­te­ri­zação e dos ob­jec­tivos que as forças de­mo­crá­ticas in­vocam para a com­bater. Devem as lutas so­ciais apontar como ob­jec­tivo bá­sico a ex­tinção da po­breza? Ou, in­ver­sa­mente, essa luta de­verá ser se­cun­da­ri­zada visto a po­breza se re­velar ine­vi­tável e eterna?

Não é pre­ciso ser-se ateu para se re­cusar esta úl­tima po­sição dou­trinal. É evi­dente que o homem produz ri­queza mais que su­fi­ci­ente para que cada ser hu­mano viva de­cen­te­mente, pro­grida, tenha tecto, cui­dados de saúde e meios de edu­cação. A po­breza só co­meça onde a ri­queza é in­jus­ta­mente dis­tri­buída. Alastra e con­ta­mina o es­paço so­cial apenas quando elites pri­vi­le­gi­adas se apro­priam do fruto do tra­balho co­lec­tivo. Num uni­verso po­li­ti­ca­mente or­ga­ni­zado só o Es­tado tem re­cursos e poder para con­duzir a bom termo a luta pela ex­tinção da po­breza e o aper­fei­ço­a­mento per­ma­nente das formas de dis­tri­buição mais justa da ri­queza.

Não é pre­ciso ser-se mar­xista para se re­co­nhecer que o ca­minho para a su­pressão da po­breza passa por de­ci­sões vi­go­rosas do poder po­lí­tico, tão graves e ex­tensas são as mu­danças a in­tro­duzir no es­paço real que o ca­pi­ta­lismo criou. Mu­danças que ne­ces­sa­ri­a­mente têm de ser gra­duais, ter em con­si­de­ração os fac­tores cul­tu­rais e éticos das di­versas co­mu­ni­dades hu­manas e re­cusar o sec­ta­rismo. Mas poder forte e cen­tra­li­zado que trave e ex­tinga o sub­de­sen­vol­vi­mento, a cor­rupção e a ex­plo­ração do homem pelo homem. A «luta contra a po­breza» é uma frente de com­bate de uma ex­tensa ba­talha es­sen­ci­al­mente po­lí­tica.

 

As falsas op­ções e o do­mínio
do «mer­cado da po­breza»

 

Se­gu­ra­mente, em países dra­ma­ti­ca­mente atra­sados como Por­tugal, o ac­tual de­clínio do Es­tado so­cial tem de ser tra­vado quanto antes. Pelo menos, me­tade da po­pu­lação por­tu­guesa já foi atin­gida, di­recta ou in­di­rec­ta­mente, pelo de­sem­prego e pela ace­le­rada pau­pe­ri­zação. Os tempos pró­ximos serão ainda pi­ores para os po­bres.

Po­nhamos de parte o humor negro que é a his­tória de fadas dos mi­li­o­ná­rios-fi­lan­tropos. A outra pro­posta que fica sobre a mesa é a da Igreja apoiada na sua «so­ci­e­dade civil», nas ONG e IPSS, nas Mi­se­ri­cór­dias, na sua rede fi­nan­ceira e nas suas re­la­ções in­ter­na­ci­o­nais. A tese é esta: a in­ter­venção ca­tó­lica é hu­ma­ni­tária, so­li­dária e não lu­cra­tiva. Não visa subs­ti­tuir-se ao Es­tado so­cial mas com­pletá-lo através das prá­ticas cristãs sócio-ca­ri­ta­tivas. É seu ob­jec­tivo cen­tral com­bater a po­breza mi­ti­gando-a, visto que o fe­nó­meno é de todos os tempos e assim será nos sé­culos vin­douros. Quere-o Deus. São três pre­missas falsas.

No pri­meiro caso (e não re­cu­sando que muitos ca­tó­licos en­vol­vidos agem por amor ao pró­ximo), a «so­li­da­ri­e­dade ca­tó­lica» re­clama-se como um «tra­balho de missão» e faz pro­se­li­tismo. E não é de­sin­te­res­sada dos bens ma­te­riais: veja-se só a enorme tor­rente de lu­cros re­co­lhida pela acção so­cial da Igreja, desde os lu­cros da Lo­taria, aos sub­sí­dios per ca­pita dos apoios aos po­bres e às isen­ções fis­cais que a Con­cor­data lhe ga­rante.

No se­gundo caso (não se subs­titui ao Es­tado), a prá­tica de­monstra estar-se em pre­sença de um mero jogo de pa­la­vras. Es­ti­mular a «fuga» de téc­nicos e para os «pri­vados» é tentar des­truir o apa­relho so­cial do Es­tado; in­tro­duzir na área so­cial as re­gras do mer­cado, re­pre­senta minar as bases fi­nan­ceiras do sis­tema ac­tual que vive ri­go­ro­sa­mente das verbas do or­ça­mento pú­blico. De­pois, tudo pas­sará quem «mais der».

No ter­ceiro caso (po­breza é fa­ta­li­dade) re­vela-se o sen­tido de classe do pro­jecto ca­tó­lico: calar a re­volta dos po­bres e en­tregá-lo, im­po­tente e sub­misso, nas mãos dos seus ver­dugos. Eter­nizar a po­breza.

Mesmo a nível das suas altas es­tru­turas di­ri­gentes co­meça a notar-se entre os sa­cer­dotes mal-estar e di­visão pe­rante as po­lí­ticas so­ciais da Igreja. Isso res­salta de uma nota da re­cente reu­nião da Con­fe­rência Epis­copal, a tal ponto cor­tada pelo lápis do censor que nem se­quer foi di­vul­gada na co­mu­ni­cação so­cial; em en­tre­vistas pes­soais (no­me­a­da­mente numa delas, com o pró­prio porta-voz da Con­fe­rência) e em do­cu­mentos emi­tidos pela Liga Ope­rária Ca­tó­lica, em vés­peras da Greve Geral, e si­len­ci­ados.

Fale-se. Que­brem-se os tabus. Os tempos são de po­si­ções fron­tais!



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