11 de Setembro
Foi o 11 de Setembro, nove anos depois do ataque criminoso às chamadas Torres Gémeas bem no centro de Nova Iorque, e a televisão assinalou o aniversário com o destaque que era de esperar. Este ano com um condimento especial: um dos fundamentalistas fanáticos que nos Estados Unidos proliferam ameaçara proceder a uma gigantesca queima de livros, neste caso exemplares do Alcorão, no exacto lugar onde ocorreu o atentado. Dir-se-ia que o homem se inspirara nas inesquecíveis queimas de livros praticadas pelo nazismo alemão, hipótese que aliás nada leva a pôr de parte, pois é sabido que o nazismo tem abundantes admiradores na que é tida como a maior democracia do mundo. Mas além deste mau aspecto acontecia que o projectado auto-de-fé seria um eficaz rastilho para incendiar indignações em todo o mundo islâmico com o mais que provável acréscimo de ataques a militares, empresas e interesses norte-americanos nos mais diversos lugares do planeta. Por isso se levantaram muitas vozes pedindo o cancelamento do projecto além do mais imbecil, com destaque para a intervenção do presidente Obama que assim reforçou a sua imagem tão desgastada, para seu mal, de homem pacífico e cordato. Entretanto, como é sabido, foi anunciada a retirada das forças norte-americanas do Iraque, apenas lá ficando um grupinho de cinquenta mil militares que, pelos vistos, o Ocidente acha ser pouca gente, opinião decerto dificilmente partilhada pelos próprios iraquianos. Mas este já é um outro assunto que não tem directamente a ver com o 11 de Setembro comovidamente lembrado nos Estados Unidos e também, como se compreende, abundantemente referido pelas estações portuguesas de televisão. Refira-se apenas que quanto à autoria e responsabilidade pelo atentado, ainda imerso em nevoeiros e dúvidas nunca esclarecidas, nada foi lembrado. Também se entende: há questões que por vontade de quem manda nestas coisas da informação mais vale serem para esquecer.
A terceira data
Mas nos calendários que a memória histórica acolhe há outros 11 de Setembro. Um deles foi recordado, ainda que com uma discrição que de ano para ano se acentua: o dia de 1973 em que os militares de Augusto Pinochet, traidores à palavra dada pelo seu chefe e sobretudo à liberdade chilena e aos interesses do povo, assassinaram Salvador Allende, presidente eleito em eleições «free and fair» realizadas segundo o modelo de democracia burguesa que o chamado Ocidente recomenda. Sabe-se, e é bom que não se esqueça, que o golpe nazifascista de Pinochet, claramente apadrinhado por Washington, provocou mais mortes do que o ataque às Twin Towers, com a diferença de que o massacre se alongou no tempo em vez de ter sido instantâneo e se revestiu de aspectos de fria crueldade que se julgara terem desaparecido do mundo em 45 com a derrota da Alemanha nazi. Acresce que o crime foi complementado por uma espécie de ocupação económica por parte dos Estados Unidos, regida por uma equipa de economistas neoliberais que logo após o golpe se instalou em Santiago. E o processo infame deixou sementes que ainda parecem germinar hoje, já depois de o pinochetismo ter finalmente cedido o lugar a um regime de democracia formal, de tal modo a que a TV noticiou agora, ainda que muito sumariamente, a ocorrência de confrontações havidas no passado dia 11 entre manifestantes fiéis à memória de Allende e saudosos da ditadura. Porém, há ainda um outro 11 de Setembro a lembrar, e desse não fala nenhuma das operadoras portuguesas de televisão: foi no dia 11 de Setembro de 1942 que morreu no campo de concentração do Tarrafal, de facto assassinado a mando de Salazar, o secretário-geral do Partido Comunista Português, Bento Gonçalves. Porque esse crime foi silencioso, praticado não com balas mas com o uso das assassinas condições de efectiva não-sobrevivência que eram as daquele verdadeiro Campo da Morte, há alguma tendência para não fixar a sua data final. Por isso mesmo convém lembrar esse distante e negro dia de 11 de Setembro de 42. Sempre e talvez mais ainda agora, quando vai rastejando por aí, como um réptil venenoso, o processo de branqueamento da imagem do ditador à alegada luz de uma suposta objectividade que esconde as tintas não apenas negras mas também e sobretudo cor de sangue do fascismo salazarista. A memória histórica é também um património que é preciso preservar. A do 11 de Setembro de 42 há-de ser preservada pelos que não querem que Bento Gonçalves tenha morrido em vão.