A lucidez da memória, amargura e serenidade em «assim se esvai a vida – três livros num só», de Urbano Tavares Rodrigues

Domingos Lobo

De que é feita a matéria da escrita, esses imperecíveis sulcos da vida e do vivido? Esse húmus que nos conduz a uma contínua angústia e perplexidade, a extensão dos sonhos, a capacidade de, apesar de tudo, conseguirmos reflectir sobre o modo (os modos) de estar vivo mesmo no avassalador sufoco existencial?

A matéria (as palavras) para dizermos a Vida e a memória que tenazmente nos leva à escrita para que os momentos irrepetíveis do vivido, do olhar que deslassamos sobre o mundo se configure perene em sua abstracção de sombras; o que à volta da escrita mais nos amargura, seduz e extasia: o sexo, as cidades, a literatura, as artes, a política. Essas nebulosas são a matéria primordial do escritor, argamassa para as palavras com que vai urdindo os signos e os liberta do seu caos imanente: persistente Sisífo.

Eis sobre que reflecte, e inflecte, a escrita de Urbano Tavares Rodrigues no seu mais recente livro. Assim se Esvai a Vida é um longo e sensível cortejo de memórias em tom confessional. Livro arguto, feito de reflexões sobre o ofício da escrita, a pulsão cívica e a política: formas antigas de entender o mundo, de o ordenar, de o tornar habitável, de respirar. A Literatura como espaço intimista de diálogo com o outro, de partilha.

O escritor, que já não precisa provar nada, que escreveu sobre tudo, que atento esteve ao seu tempo e nele deixou a sua impressiva marca, olha-se ao espelho sem rebuços, com corajosa angústia (a lucidez é um lugar solitário) perante o definhamento do corpo, corpo no qual se não reconhece dado que outrora foi ágil e vigoroso, mesmo que, no estágio rememorativo da vida, o saiba atado à sombra mas sabendo que nele persiste uma mente que viaja, que estremece, capaz ainda de descodificar o real, de nele penetrar com a agudeza de outrora, que estóica o sobreleva.

De tudo isto, penetrando o sensitivo orgânico desta matéria, desta «loucura portátil» de que nos conta Henrique Vila-Matas, nos fala Assim se Esvai a Vida. E fá-lo numa escrita modelar, num verbo expressivo e límpido, solar por vezes, que não perdeu o fulgor dos melhores dias, percorrido por modelações sintácticas de uma sonoridade vibrátil, escrita percorrida pelos «sinais de um universo sociocultural ou de uma estrutura mental bem definida», na qual descobrimos esse êxtase perpétuo perante a vida e conseguimos ainda «ler uma certa respiração do absoluto», como refere Maria Graciete Besse1.

A escrita de Urbano é um todo, o que conta e o modo como essa fala se expande, percorre, sem artifícios retóricos, os signos geracionais sobre os quais reflecte, nos reflecte, mesmo que sintamos que este livro, ao abrir-se, ao expor-se por territórios ainda não tentados pelo autor, ou apenas explorados a espaços, nos deixa perplexos pelo inusitado, pela frontalidade com que a sageza do verbo diz, sem a tessitura efabulatória, esse universo a um tempo íntimo e geral: «assistir à miséria lenta do meu corpo a consumir-se» (pág.73) e, mais adiante, o olhar que se desprende e olha o mundo no qual «não apetece nem viver nem morrer numa sociedade destas» (pág.74), dado ter-se transformado numa «sociedade de mercado e dos seus medíocres ídolos e tótemes». Esse chão dos afectos pelo qual toda esta escrita, o seu exultante rumor, se inscreve, está patente no entusiasmo fraterno com que se refere a seu irmão Miguel, a ternura pelo filho António (Conto com bruxedos para o meu António), mas elevando essa fraternidade para os patamares mais nobres dos desígnios futuros, do sonho de «construir/um mundo de homens livres/e iguais», quando o autor sabe que pertence à tribo que se não curva, que se não rende. É desse verbo cativante, nessa monódia que atravessa a raiva e os afectos, um subtil humor, dessa singularidade lexical, que a escrita de Urbano Tavares Rodrigues se urde singular, mesmo quando, desarmada, nos abre os portões dessa memória enxuta de uma vida e de uma obra pela qual «se articulam variados percursos que correspondem a modulações diversas do confronto do escritor consigo mesmo e com o mundo»2.

A ideia de felicidade sartriana está hoje maculada pelo regresso em força do neoliberalismo que tudo pretende reduzir à produção e ao consumo. La joie de vivre é, no nosso tempo, um desejo cada vez mais escasso e efémero. O novo poder tentacular do capital, que imergiu após a queda da URSS, tende a reduzir os trabalhadores a meros instrumentos para os seus desígnios de opressão global. A nova barbárie anunciada, essa neo-escravatura que o capitalismo impõe, desenha-se no horizonte e as crises cíclicas do sistema, esse «ovo da serpente», pode transportar em seu ventre os novos monstros. Mas o autor acredita que o Povo saberá fazer frente a um novo ciclo de horrores – de imprevisíveis consequências – e indica-nos caminhos, afirma que «la joie é a vida como festa permanente», o seu sentido de absoluto e, demiurgo, transcreve a frase de Saint Just que, em plena Revolução Francesa, perante todos os temores, afirmava: «Só conseguiria ser feliz num mundo onde pudessem sê-lo todos os deserdados do universo» (pág.87). Deste modo, se o neoliberalismo é o espinho cravado na natural aspiração dos seres humanos, em sua contínua busca pela dignidade, pelo seu direito à felicidade, há que combatê-lo «com as armas que temos na mão» em busca da felicidade que nos negam. Urbano inquire, através dos mecanismos da memória, esse espesso, ilimitado «território do humano».

A diversidade (que não dispersão) temática destes textos tem, assim, um denominador comum: o verbo enxuto e exacto, herdeiro do noveau romain entanto caldeado pela incisão metafórica de uma fala em que o mágico e o sensível se entrelaçam, esse subterrâneo rumor de um olhar que viu mundo, que leu, que viveu mas consegue permanecer arguto e extasiado perante o real e a escrita, da escrita como afirmação de identidade, como postura intelectual e cívica. Mesmo quando essa escrita, pela urgência de respirar, se apresenta a espaços formalmente menos conseguida (como em algum dos poemas, por exemplo), o autor não deixa de nos dar, através das palavras, testemunho dessa vivência, desse apego às coisas da vida, expressando através delas esse mordente modo de cantar. Essa verdade filtrada pelo verbo.

Amargura e serenidade

Assim se Esvai a Vida, é um livro feito de amargura e serenidade. De amargura pelo tempo que o autor sente fugir-lhe, essa água entre os dedos, e a lucidez serena desse olhar que, crítico, percorre o corpo do real quotidiano, a argúcia de penetrar, com avidez, o fundo escuso das coisas em que civicamente se empenhou, de as desdobrar e denunciar. Livro que atravessa a memória – esse acervo perene e substantivo da matéria de escreviver – e perante ela, nos seus dúcteis linimentos, se diz estupefacto.

Se a obra ficcional de Urbano Tavares Rodrigues é constituída pelo timbre da autenticidade, estes textos vão mais fundo nessa determinação dado tratar-se de uma corajosa assunção da sua peculiar forma de pensar («sou um livre-pensador», afirma) e estar na vida. A arte de contar-se sem subterfúgios, de assumir a primeira pessoa do discurso narrativo. Mesmo no que ao seu percurso político diz respeito, o autor assume, sem inibições, o seu posicionamento por vezes divergente e crítico face ao projecto de sociedade pela qual sempre, solidariamente, se bateu. Um escritor que é, também, um homem livre e, na singularidade do seu discurso, ousa assumir a incomodidade de uma voz que, sendo unívoca, se define plural e assertiva, sem no entanto deixar de ser atenta e generosa.

Os textos de Os Olhos do Demónio e Outros Contos estão eivados de fina ironia, de um clamor contido, de nostalgia suave (nostalgia e lucidez que são os travejamentos consubstantivos do discurso) que modelam o corpus incoercível desta fala. Mas é o humor, essa elegância do verbo em serenidade absoluta, que prevalece distintivo. O autor, apesar dos pesares, não se expõe amargo, antes há nele, em modular transparência, uma impressiva mágoa pelo que poderia ter sido o seu país (o Abril sonhado) e o desencanto de que a crua realidade, no vórtice do caos capitalista, hoje enferma.

Há nestes textos de Urbano Tavares Rodrigues uma moralidade outra, contrária ao figurino burguês e judaico-cristão que por aí troveja, que tem a coragem de se saber utópica, de se assumir materialista, no cerne do humano: uma moral de raiz existencial que ainda acredita na felicidade como projecto, na felicidade que lhe vem do outro e com o outro, no prazer dos sentidos, no gozo de sentir a plenitude da vida; mas sempre extensa e fraternalmente social – como em Saint Just.

O que emerge neste registo narrativo que é Assim se Esvai a Vida, é a urgência de contar, de testemunhar, de vincar um percurso de vida e de escrita – porque ambos, na arte ficcional de Urbano Tavares Rodrigues, se confundem e mergulham. A sinuosidade (de um labor oficinal irrepreensível) com que o autor introduz a(s) máscara(s) e o diegético no discurso, e o faz pessoalíssimo e oscilante entre o dever cívico da denúncia e a imponderabilidade do ofício de escrever.

É o próprio autor que a este chão dual nos conduz, quando afirma: «Se o texto literário reflecte a vida, também se propõe, nalguns casos, pelo menos, nela interferir, transformando-a».3

_______________

1Discursos de Amor e Morte, A Ficção de Urbano Tavares Rodrigues, de Maria Graciete Besse. P.83 – Ed.Campo das Letras

2Discursos de Amor e Morte, pp.29

3UTR – Ensaios de Escreviver, 1971



Mais artigos de: Temas

A desmistificação do <i>New Deal</i><br>e o aprofundamento da crise do capitalismo

Com o capitalismo americano atolado numa crise económica de uma tal severidade que lembra cada vez mais a Grande Depressão dos anos 30, não é de espantar que haja por toda a parte apelos a um «novo New Deal». A nova administração Obama já delineou um vasto programa de estímulo económico para dois anos, num montante de 850 mil milhões de dólares, destinado a fazer sair o país da profunda crise.