Os senhores do mundo

Jorge Messias

Entrámos na recta final de um curto mas intenso período de aceleração da História. Em coisa de vinte anos, o capitalismo internacional desmembrou os estados socialistas europeus, apossou-se do poder, conquistou enormes mercados, criou uma moeda única, impôs o consumismo como regra do comportamento normal, baniu da face da Terra qualquer vestígio de postura ética na política e nos negócios, divinizou o lucro como valor-padrão, alimentou os mitos do «sucesso», maquilhou a pobreza e promoveu a exploração do homem e o desaparecimento abrupto ou gradual dos serviços sociais do Estado; privatizou e reprivatizou as instituições estatais, alargou o fosso entre ricos e pobres e compôs de si mesmo uma imagem de sucesso irreversível que nada ou ninguém conseguiria travar. Todo este processo começou há 20 anos e em vinte anos se esgotou. O capitalismo era então senhor do mundo.

A Igreja Católica, o Vaticano, cujo o chefe máximo agora esteve em Portugal, aproveitou a boleia do grande capital em cuja história milenar, aliás, sempre desempenhou papel activo e interessado. Fundou multinacionais, negociou nas bolsas de valores, afirmou-se ao lado das políticas mais conservadoras, firmou concordatas com os estados mais católicos e mais exploradores, forneceu aos ditadores as bases teóricas que estes depois desenvolveram, estabeleceu posições fortes na área social do Estado, instalou uma poderosa «sociedade civil» e preparou, assim, as bases de uma futura conquista do poder pelo eixo Igreja/Capital. Nunca se virá a conhecer, ao certo, qual o montante dos lucros que o Vaticano acumulou, nesta fase de afirmação do capitalismo, com a especulação das bolsas, com o negócio do dinheiro ou com as mafias dos offshores. O Vaticano é um poço sem fundo.

Vinte anos não é nada na historia da humanidade. É menos que um abrir e fechar de olhos. Mas não devemos desvalorizar a importância que este corte do curso normal dos acontecimentos teve, tem e terá a médio prazo na evolução de situações históricas concretas. O palavreado político da Igreja, aliado ao discurso oco e demagógico dos políticos, continuará por algum tempo a fragilizar as reacções de significativos estratos das massas populares. Atrasam o processo revolucionário mas não podem evitar a Revolução Socialista. Recurso que tenta ocultar o abismo em que se afundam os governantes que citam a crise cíclica, simplesmente, quando se torna  evidente que novas crises surgem continuamente e se colam ao longo cortejo das crises anteriores não resolvidas. Este ciclo infernal começou com o canibalismo do lucro, esmagou a actividade produtiva, promoveu o défice, mentiu em toda a linha, para mais vender e... hoje os resultados estão à vista: bancarrota, falências, desemprego, estagnação económica. Até os estados mais ricos estremecem e podem desabar a qualquer momento. Nenhuma religião ou nenhum governo da órbita capitalista será suficientemente malabarista para trocar as voltas a esta crise crescente, profunda e global.

O Vaticano, agora, tenta queimar o tempo distraindo as atenções do povo para o grave problema da pedofilia dos padres. Se é certo que se trata de uma situação básica que à Igreja Católica importa resolver, também é evidente que o dilema é velho, tem séculos de existência e foi conhecido por sucessivas gerações de sacerdotes e leigos. A hierarquia religiosa, enquanto pôde, fingiu ignorá-lo. Estava em causa a pretensa santidade da Igreja. Agora, essa malha de silêncios chegou aos limites do aceitável. E o Vaticano, com as suas velhas manhas e já que não tem margem para manter a ficção de que de nada sabia, tenta avolumar as dimensões do escândalo sexual dos padres para distrair o povo de outros crimes que comete e de modo algum são menos graves do que esse: os crimes políticos, os crimes económicos, os crimes na informação, na segurança social e na saúde pública, os crimes que favorecem sistematicamente os ricos e causam a miséria dos pobres, o sentido real das concordatas, das fundações e das instituições financeiras filantrópicas que a Igreja dissemina e sustenta. Tudo isto, enquanto oculta os segredos que disfarçam  as manobras inconfessáveis de redes reaccionárias e confessionais, como é por exemplo o caso do Opus Dei, da Companhia de Jesus ou da Congregação para a Defesa da Fé. Casos exemplares, entre muitos outros.

A fase que vivemos é grave e delicada. A novidade – entenda-se – é que, talvez pela primeira vez na história, as forças desencadeadas acabam por atingir ricos e pobres, crentes e descrentes, exploradores e explorados, embora de formas diferentes. Os ricos, os fanáticos e os exploradores tentam afirmar uma unidade impossível de alcançar no quadro dos seus antagonismos de classe. Os outros, os pobres, os trabalhadores, os marginalizados, os idealistas revolucionários, os desempregados, definir uma plataforma comum que permita unificar e reforçar as forças populares. Tarefa difícil mas tendencialmente possível. Os delírios da «globalização» acabaram por contribuir para destacar e pôr em evidencia a «luta de classes» como alavanca da História.


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